Vidas Secas: a miséria e a pobreza fabricadas à gente sertaneja são escrutinadas por Nelson Pereira dos Santos em retrato dilacerante à conjuntura pré-1964

Thainá Campos Seriz
3 min readMar 18, 2024

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Pôster promocional do longa “Vidas Secas”, adaptação cinematográfica do clássico da literatura nacional de autoria de Graciliano Ramos (1938) dirigida e roteirizada por Nelson Pereira dos Santos. Foto: reprodução.

Título: Vidas Secas
País de origem: Brasil (1963)
Duração: 103 minutos
Gênero: drama
Direção e roteiro: Nelson Pereira dos Santos
História original: Graciliano Ramos (1938)
Produção: Herbert Richers, Luiz Carlos Barreto e Danilo Trelles
Fotografia: Luiz Carlos Barreto e José Rosa
Montagem: Rafael Justo Valverde
Som: Geraldo José
Distribuição: Herbert Richers Produções Cinematográficas
Elenco: Átila Iório, Maria Ribeiro, Genivaldo Lima, Gilvan Lima, Jofre Soares

Melancólica e brutal é como definiria a adaptação para o cinema (Herbert Richers Produções Cinematográficas, 1963) de Nelson Pereira dos Santos (1928–2018) do clássico literário nacional Vidas Secas (1938), de autoria de Graciliano Ramos (1892–1953). Retrato documental da miséria e da fome da seca sertaneja (c. 1932), dos Santos percorre já à abertura o ambiente quase inóspito às vidas humana e não humana por que os retirantes Fabiano (Átila Iório), Sinhá Vitória (Maria Ribeiro) e os meninos mais velho e mais novo deslocam-se rumo à expectativa de uma nova vida. Ao plano geral em cenário extremo, o horizonte de aproximação ao cinematógrafo das quatro personagens (ou cinco, a contar-se a cadela Baleia) realiza-se sob o som contínuo de um carro de boi e em sofrimento. Interessante é a ênfase atribuída a distintas conclusões acerca da miserabilidade de existir no sertão via decupagem: em uma perspectiva objetiva e, portanto, de observação onisciente, o foco sobre os diálogos expositivos de Fabiano e de Vitória a respeito das dificuldades à subsistência e da migração intermitente faz-se complementar ao exausto olhar infantil, leia-se subjetivo, direcionado à caminhada entre chão árido, enquanto o sonho da cama de couro e de madeira de Sinhá atravessa a esperança por dignidade e por dias melhores.

Sinhá Vitória (Maria Ribeiro), Fabiano (Átila Iório) e seus meninos retiram-se a outro recanto do sertão em busca de uma vida melhor. Foto: reprodução.

À morte, no entanto, diária de si e do entorno, a diferença de classes refletida na superexploração da força de trabalho campesina pelas burguesias grande e médio-proprietárias e no assédio ao poder policial-estatal situada aos ângulos baixos amplia a opressão à pobreza. Diante do contexto permanente de insegurança alimentar e de sequestro à dominação laboral, a necessidade de outro movimento migratório desponta à vista. Neste espaço de pouca ou de nenhuma demonstração afetiva, o sacrifício de Baleia acrescenta ao drama constituído a perda talvez final de qualquer humanidade sobretudo protegida às crianças. Em uma verificável simetria narrativo-visual, a retirada da família efetiva-se no afastar sôfrego dos protagonistas junto à câmera e àquele mesmo ruído excruciante do ato inaugural, sendo a presente repetição contraste com o desejo da conquista da sedentarização e do mínimo essencial a uma sobrevivência digna negado.

Por fim, se a denúncia do Cinema Novo à miséria provocada à negligência estatal e às subopressões de forças sociais satélites fez-se necessária à animação da quadra histórica então vigente (pré-golpe cívico-militar de 1964), em uma leitura contemporânea, a visão unicamente pauperizante do Nordeste e do povo nordestino está, hoje, subvertida em abordagens complexas e plurais da produção cultural-intelectual e da resistência política das gentes do território, pois mais distantes das autorias branca, masculina e sudestina de outrora.

No sonho de Sinhá Vitória, a cama de couro simboliza o alcance ao estágio de dignidade requerido ao reconhecimento de sua condição humana. Em busca, portanto, desta humanidade e do mínimo essencial à sobrevivência, a família inicia nova retirada (imagem à direita). Fotos: reprodução.

Visto para o Clube do Crítico.

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Thainá Campos Seriz
Thainá Campos Seriz

Written by Thainá Campos Seriz

Historiadora (UFF). Pesquisa e revisão de conteúdo no Canal Preto. Escrevo sobre cinema.

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