Uma Noite em Haifa: a cisão é uma realidade apagada (que todos podem ver)
Direção: Amos Gitaï
Produção executiva: Laura Samara
Roteiro: Amos Gitaï e Marie-Jose Sanselme
Direção de fotografia: Eric Gautier
Fotografia: Ziv Koren
Edição: Yuval Orr
Composição musical: Alexey Kochetkov
Elenco: Maria Zreik, Khawla Ibraheem, Bahira Ablassi, Naama Preis, Hanna Laslo, Tsahi Halevi, Clara Khoury, Makram Khoury
A palavra a definir Uma Noite em Haifa (Synapse Distribution, 2020–3) é cisão. Destaque no Festival Filmelier no Cinema, a sensível direção do israelense Amos Gitaï para este Laila in Haifa (título original) valoriza na exata medida do comovente roteiro de Marie-José Sanselme, contribuição de longa data de A. Gitaï, o protagonismo ansiado, porém igualmente cindido de cinco mulheres cujos destinos ou sonhos parecem encontrar senão a resistência de seus parceiros românticos e/ou políticos, a hostilidade apagada do próprio lugar. Situada ao norte do território contemporaneamente sitiado pela entidade “estatal” sionista, a Haifa histórica, portanto, palestina, é aquela (ou esta?) ocupada desde 1948 pelas milícias israelenses e metonímica tanto da coexistência tensionada entre palestinos e suas contrapartes quanto do tensionamento também esvaziado das existências das protagonistas Laila (Maria Zreik), Khawla (Khawla Ibraheem), Bahira (Bahira Ablassi), Naama (Naama Preis) e Hanna (Hanna Laslo).
O trem a cortar a paisagem no exterior do espaço (cenário único) da galeria de exibição do trabalho fotográfico de Gil (Tsahi Halevi) é elemento físico ao movimento interno de atravessamento da raiva, da ingenuidade, da ira, do desejo de vingança, da corrupção, do ímpeto da resistência pela salvaguarda da ancestralidade palestina, da vontade de ser e do afeto a cada umas das personalidades protagonistas, com mais ou menos tempo de tela, concorrentes. Se a promoção da cultura e da arte palestinas é fator de exploração em benefício individual — neste caso, de Roberta (Clara Khoury) — , para Laila, empreendê-la é parte do próprio fazer profissional/de seu sistema de valores e refúgio à tragédia da realidade de uma ocupação apagada como tentativamente é sua identidade. Este tanto coexiste com o amor por Gil e com a raiva pela infantilização patriarcal e etarista do marido Kamal (Makram Khoury), cuja diferença de idade também pontua diferentes resistires (intergeracionais) no mundo, em especial, quanto à luta política. Já a juventude de Bahira é ora o frescor, ora a impetuosidade talvez necessária aos atuais movimentos pró-autodeterminação palestina, inviabilizados e massacrados que estão entre a complacência de quem deveria agir — leia-se a geração hoje alienada de si e do caráter de sua (r)existência em território ocupado — e o racismo do colonato sionista. Por falar em colonato, Naama é a voz a qual, israelense, justifica a inação à barbárie genocida antipalestina como a busca dos seus e de si mesma por seu lugar no mundo, ainda que o interior seja ele mesmo terra arrasada. Neste sentido, a ansiada troca horizontal nas relações romântico-afetivas, a admiração recíproca aguardada do companheiro de vida e a perda ou a ausência do desejo sexo-conjugal pela rotina enfadada do casamento com filhos seriam disputas praticamente ilusórias, porque já perdidas, deste existir-mulher, em paralelo com o ser israelense em território ancestral palestino.
Se, com Naama, a maternidade foi fator-chave ao distanciamento afetivo-sexo-romântico do parceiro, para Khawla, sua compulsoriedade seria fatalista. A redução ao papel de mãe e esposa seria alienadora de uma potencialidade a descobrir, em especial, depois da sobrevivência a um abuso sexual na infância. A insistência do então companheiro recordava-a do poder incontornável do tio sobre o próprio corpo e, por isso, afastar-se deste destino, ou seja, o de ter a carne santificada via procriação, era descobrir-se ela mesma mulher. Por outro lado, a viúva Hanna, em momento distinto da trajetória das outras quatro companheiras, quer reencontrar o prazer de ser ou de sentir-se desejada com o encontro marcado digitalmente, ainda que a decepção ou o disfarce para uma experiência sem julgamentos sejam pontos de uma vida a reiniciar-se, agora, em sua companhia. A escolha pelo protagonismo feminino e pelo (igual) breve iluminar de um relacionamento homoafetivo de Gitaï faz-se alternativa ao teatro da dominação e da hegemonia masculinas via guerra enquanto conflito aberto frequentemente encorajado por homens. Não obstante o centro organizacional da sociedade palestino-israelense de Haifa seja o tensionamento das relações sociais de poder da ocupação sionista, o embate das cinco protagonistas pelo (re)encontro da unidade de vidas, de seres e de existires fragmentados entre a guerra e o patriarcado (de origem) é tão político quanto a própria resistência palestina.
Se dito e escrito querem dizer nada, como asseveraria Khawla, a busca tanto imagética quanto ideal-narrativa da complexidade entre a vida na ocupação, as interpessoalidades em lados contestados, a tomada da identidade e a retomada de uma identidade de grupo, em outra vaga, diz o contrário do que, em geral, crê-se sobre o Oeste asiático (Oriente Médio). A perspectiva interna é história a contrapelo da miséria, de heróis e de vilões oficiais para o Ocidente. Na verdade, a história é uma: a diáspora (ou o trauma) do deslocamento forçado nas próprias fronteiras é desarticulador de identidades, de sociabilidades e da proteção social dos comuns. A diáspora como a vivida ainda em território palestino é, porque genocida, a experiência mesma de morte — física, cultural-identitária e simbólica — .
Uma Noite em Haifa é mais pessoal do que gostaria de explicitar, e a sobrevivência na diáspora além-mar é um limbo entre assimilação e adaptação, quando a última ainda deve ser sinônimo de reafirmação do ser em sua cultura. Resistamos. Nós ainda voltaremos.