Som da Liberdade: abordagem messiânica é a nova-velha exaltação ao ufanismo estadunidense
Título original: Sound of Freedom
País de origem: EUA, México
Gênero: drama de ação
Duração: 135 minutos
Direção: Alejandro Gómez Monteverde
Roteiro: Rod Barr e Alejandro Gómez Monteverde
Produção: Eduardo Verástegui
Trilha sonora: Javier Navarrete
Edição: Brian Scofield
Distribuição: Angel Studios, Inc. (EUA); Paris Filmes (Brasil)
Companhia produtora: Santa Fe Films
Elenco: Jim Caviezel, Mira Sorvino, Cristal Aparicio, Lucas Ávila, Yessica Borroto, Bill Camp, Kurt Fuller, Gary Basaraba, José Zuñiga, Gerardo Taracena, Scott Haze, Eduardo Verástegui, Javier Godino, Gustavo Sánchez Parra
Hesitei ver ou falar do lançamento em questão pelo receio de apropriação indevida, intelectualmente desonesta ou até criminosa das linhas a seguir. Em meio à ascensão motivada e irresponsável do extremismo de direta como ator político relevante no Brasil e no mundo, acredito, era de justificar-se tamanha preocupação, se concordamos sobre o significado dos anos 2019–2022 para este país. Aviso: não irão.
A convite do Espaço Z e da Paris Filmes, conferi Som da Liberdade (título original: Sound of Freedom, 2023), longa com direção de Alejandro Gómez Monteverde e roteiro de Rod Barr e de Alejandro Gómez Monteverde acerca da verídica histórica, pois personagem não criada, do major Timothy “Tim” Ballard, então agente do Departamento de Segurança Interna estadunidense e coordenador da divisão governamental de combate ao tráfico de pessoas e à exploração sexual infantil que se envolveu no resgate de Rocio Aguilar (Cristal Aparicio), uma menina hondurenha traficada para a Colômbia. Não fosse o contexto extratela a enredar a exibição, Sound of Freedom tratar-se-ia de outra das peças questionáveis e, por isso, rebatidas do salvacionismo branco e ufanista norte-americano responsável pelas desestabilizações pró-golpes de toda ordem no resto do continente época, sim, outra também. A escolha óbvia da lente amarela e da paleta clássica de cores pastéis no retrato de Honduras, México e Colômbia qual territórios sem lei, as câmeras de visão superior e os planos abertos e fechados, em especial, os close-ups no rosto do tão inexpressivo quanto irregular Jim Caviezel como Tim Ballard são os lugares-comuns da caracterização do herói (?) cuja síndrome saviorista torna-o, ao arrepio do sistema legal, patético, quase candidato que é a caudilho.
O papel político-social deste trabalho seria incontestavelmente valorizável, não fosse a tentativa inócua de fazê-lo em instâncias não intergovernamentais, porque de satisfação unicamente egoica. O herói não consegue sê-lo em casa, pois os seis filhos são alegorias a quem o logo ex-oficial recorre a fim de dizer-se imbuído de algo, já que não lhes dedica atenção. Neste sentido, a nota messiânica da missão autoatribuída de Ballard não é, em verdade, conspiracionista, mas mundana e conradiana. O apoio entusiasmado de Caviezel a um grupo da ultradireita (anti)política de seu país embasa apenas a infundada alegação de censura, enquanto, na vida real, não a da paranoia do ator, o projeto de produção de Som da Liberdade fora engavetado por cinco anos — ou por dez anos, dado o argumento datar de 2013 — , em razão da venda da 20th Century Fox para a Disney (sim, a mesma da Marvel). Embora desmentida por Gómez Monteverde, a mentira segue propagada. Já o oferecimento da distribuição nos EUA à produtora de filmes de temática cristã Angel Studios, Inc. por Eduardo Verástegui, produtor o qual adquiriu os direitos de realização do longa, tornou tudo mais controverso.
Por falar em controvérsia, a 2ª a enevoar o filme diz respeito ao próprio Ballard. Tendo sido o alegadamente responsável pelo resgate de um grupo de crianças da rede interamericana de tráfico humano e sexual infantil — existente, diga-se de passagem, e nunca negada — via Operation Underground Raildroad (OUR), ONG criada por nosso protagonista (a apropriação do nome é uma grande empáfia!), Ballard, entretanto, nunca conseguiu comprovar as atividades de sua organização, segundo reportagem da VICE News (2020) — pergunto se os propagandistas à direita do filme no Brasil, tão refratários a ONGs, questionarão o fato — . Ainda mencionaria a divergência entre os números de arrecadação e a notada presença escasseada do público nas salas de cinema, mas não o farei, porquanto afastada estou, há muito, de uma resenha.
Som da Liberdade melhor serviria a uma necessária e até mais ampla denúncia do tema abordado em seus 135 minutos, se não se preocupasse em exaltar justiçamento e individualismo anticombate sistêmico de estruturas. A intenção positiva do diretor A. Gómez Monteverde e do produtor Eduardo Verástegui esbarra na ingenuidade antipolítica da resolução de problemas societários de fundo colonial-imperialista. Som da Liberdade seria bem-vindo, se não se permitisse apropriar pela máquina conhecida de propaganda da extrema-direita, no que de direitos e de democracia quer destruir.