Retratos Fantasmas: o cinema (de Kleber Mendonça Filho) é massa, porque memória e afeto
Direção e roteiro: Kleber Mendonça Filho
Produção: Emilie Lesclaux
Coprodução: Silvia Cruz, Felipe Lopes
Montagem: Matheus Farias, edt.
Direção de fotografia: Pedro Sotero, abs.
Fotografia adic.: Kleber Mendonça Filho, Maira Iabrudi, Marcelo Lordello
Pesquisa de imagens de arquivo: Karina Nobre, Cleodon Pedro Coelho
Design de som: Kleber Mendonça Filho
Montagem de som e mixagem: Ricardo Cutz
Produtor associado: Marcelo Brennand
Empresa produtora: CinemaScópio
Empresa coprodutora: Vitrine Filmes
Elenco: Rubens Santos
Há quem ainda não valorize o cinema brasileiro. Se o problema da distribuição das produções nacionais nos circuitos exibidores é real, no entanto, sua genialidade em nada deve ao Norte global. Retratos Fantasmas (CinemaScópio Produções/Vitrine Filmes, 2023), nova longa de Kleber Mendonça Filho (KMF), chega como inflexão de uma cinematografia documental, porque existencialista dos dramas e das mazelas à brasileira. A bela edição de Matheus Farias e a excelente trilha sonora de Tomaz Alves Souza guiam-nos junto à narração de Mendonça Filho no percurso pioneiramente intimista (e de fortes notas autobiográficas) da relação do diretor e roteirista com o cinema, a partir dos registros em fotografia e vídeo do apartamento da família — em verdade, comprado pela mãe, a historiadora Joselice Jucá (in memoriam), após a separação do então companheiro e pai de Kleber — em Boa Viagem, no Recife, antes espaço afetivo de recomeço. O cenário de O Som ao Redor (2012) funde-se às imagens caseiras do jovem incentivado pela mãe à experimentação artística enquanto trabalho com a memória de si e do entorno, à semelhança de seu ofício. Aliás, a relação entre memória e ficção explica o início desta trajetória, já que, em parte documento, a memória depende da ficcionalização para ser elaborada narrativamente no tempo e no espaço.
O trabalho com o entorno, marca da obra de KMF, encontra desenvolvimento no ato seguinte, que trata, a partir dos cinemas no espaço urbano do centro econômico-social da capital pernambucana, das relações sobretudo políticas das elites locais, nacionais e internacionais, das classes médias e proletárias com a opulência destruída e com a decadência provocada de uma cidade em constante transformação/inserida em um país igualmente atribulado pelas suas convulsões, digo, transições. Se os cinemas Art Palácio-Trianon, Moderno, Parque, Veneza e São Luiz acompanham a modificação paisagística da cidade qual sedes da ebulição cultural e da relevância econômica perdida ou não de Recife, o surgimento e o desaparecimento de cada um apontam para um redesenho de poder sucumbido a um capitalismo civilizador cujo monopólio é, além de financeiro — lucro predatório ele mesmo à exploração de recursos ambientais/urbanísticos e humanos — , religioso. Sim, Aquarius (2016) e Bacurau (2019) reenviam abraços.
A dimensão espiritual abordada no 3º ato diz não só, claro, acerca do fechamento destes espaços pela cessão/venda à abertura de igrejas neopentecostais, mas do cinema como templo, destinado que é à expiação da vã, mesquinha subjetividade das pessoas espectadoras pela projeção em tela de seus/nossos ideais. Observar compreende ser observada(o) de volta por um entorno imediato, leia-se as individualidades presentes dentro e até fora da sala de cinema, e pelo ego criado/projetado entre o próprio olhar. Este (unimúltiplo) movimento (in)forma caráter, e exatamente por meio do trabalho que crio com ou a partir da tela de destruição de um idealtipo para a construção de um novo eu via troca na entrega da personagem e da pessoa artista àquele corpo egoico, compartilho e dignifico humanidades.
Um pensador há muito demonizado por paranoicos à direita (1818–1883) asseverou ser a história repetível como tragédia e farsa. Contar histórias, e o cinema deveria fazê-lo por excelência, evita a repetição de tragédia e farsa. A farsa é fazer desaparecer, qual fantasma, apesar da presença incômoda, o que deve ser contado. Continuemos, então, a contar histórias — de preferência, com o cinema — .
Assistam a Retratos Fantasmas nos cinemas.