Retrato de uma Jovem em Chamas: romance contemporâneo de Céline Sciamma refunda crítica feminista ao cinema narrativo sobre mulheres

Thainá Campos Seriz
3 min readApr 16, 2024

--

Pôster promocional de “Retrato de uma Jovem em Chamas” (título original: “Portrait de la Jeune Fille en Feu”, 2019), longa com direção e roteiro de Céline Sciamma. Foto: reprodução.

Título original: Portrait de la Jeune Fille en Feu
País de origem: França (2019)
Duração: 121 minutos
Gênero: drama histórico; romance
Direção e roteiro: Céline Sciamma
Produção: Véronique Cayla e Bénédicte Couvreur
Fotografia: Claire Mathon
Montagem: Julien Lacheray
Trilha sonora: Jean-Baptiste de Laubier e Arthur Simonini
Figurino: Dorothée Guiraud
Distribuição (Brasil): Supo Mungam Films
Elenco: Noémie Merlant, Adèle Haenel, Luàna Bajrami, Valeria Golino

Retrato de uma Jovem em Chamas (título original: Portrait de la Jeune Fille en Feu, 2019) (Supo Mungam Films, 2020) é das belíssimas e das mais bem-sucedidas produções contemporâneas cuja inserção em perspectiva histórica dos debates acerca dos feminismos combina intertextualidade e poética clássico-romanesca para uma reflexão atualizada do fazer cinematográfico sobre mulheres. Os planos fora de campo e médios com recorrência empregados na fotografia de Claire Mathon endossam a perspectiva individual ou rumo à individualidade de Marianne (Noémie Merlant), tomada a não comum trajetória de fomento paterno a uma emancipação intelectual-político-econômica em cenário setecentista. Sinônimo de liberdade — a figura de Marianne integra a pictórica representativa dos anseios revolucionários franceses à Primeira República (1792) — , no entanto, o exercício profissional vinculado ao retrato das brancas feminilidades sob convenções, regras e ideais aventadamente canônicos faria da prática da protagonista reprodução subopressora do olhar masculino (Mulvey, 1973) no tratamento das histórias femininas. Já à contraparte de Marianne, porquanto objeto de observação, a câmera em geral estável ou estática compreenderia o imobilismo societário marginalizador dos destinos de Héloïse (Adèle Haenel) e de gerações de meninas e de jovens outras.

Criadora e criatura em (re)construção. À esquerda, Héloïse (Adèle Haenel); à direita, Marianne (Noémie Merlant). Foto: reprodução.

Não obstante a tragédia, o retorno conseguido do olhar à personagem de Adèle Haenel impõe escrutínio reverso subjugador à homóloga então (auto)construída agente. Na profundidade de campo uma vez ampliada, o distanciamento de tipo classificador imposto ao estudo daquela em análise é transmutado à gradativa aproximação amorosa de criadora e de criatura, sendo a expectativa do fracasso e do desencontro final espaço não contraditório de modalidade reinstaurada do poder. A liberdade qual auferida, fomentada ou ainda cedida do ato de observar, diga-se, corresponde(ria) à autonomia crítica e/ou de pensamento viabilizada ao acesso ao conhecimento do mundo entre a autocontemplação e a contemplação do Outro em sua alteridade. Pertencente a uma agência criativa da realidade à volta, a solitude própria ao estímulo do desenvolvimento da intelectualidade e de afetos reais, pois produto de escolhas, constitui-se direito vedado à solidão estabelecida em negação ao trabalho de si (Foucault, 1984), quando interditada às maiorias sociais minorizadas.

Na referência ao mito grego de Orfeu e de Eurídice, a diretora-roteirista Céline Sciamma tributa a obra ao diálogo com certa antologia ocidental romântica e reinterpreta a ação do retorno do olhar ao restabelecimento mesmo das subjetividades e ao declínio do jugo afetivo (ou teórico-epistêmico). Não poder fazê-lo é filiar tamanha ruína fabricada à perpetuação reiterada dos masculinismos na heterodefinição dos amores, dos quereres e dos sentires mulheris. Ao desfecho, todavia, o concerto de A. Vivaldi (1678–1741) faz destacar a possibilidade escolhida do reencontro, desta vez, à memória compartilhada. Afinal, se só pode-se ser livre, às ausências constrói-se o vazio da vida de liberdades mediadas aos privilégios de classe.

Na imagem à esquerda, Marianne (Noémie Merlant) destrói o rosto de Héloïse (Adèle Haenel) do quadro pioneiro, porque, afinal, construíra um retrato “sem alma”. Já à direita, após anos do encontro último, as amantes encontram-se na página do livro retratado em quadro de artista diverso. Fotos: reprodução.

Não se virar é, em verdade, demonstração do ocaso da desconfiança quanto à sobrevivência do amor outrora vivido. No lugar do assassínio das amantes, o encontro renovado à individualidade possuída a Héloïse e a Marianne fará do sentimento eternidade.

--

--

Thainá Campos Seriz
Thainá Campos Seriz

Written by Thainá Campos Seriz

Historiadora (UFF). Pesquisa e revisão de conteúdo no Canal Preto. Escrevo sobre cinema.

No responses yet