Que Horas Ela Volta?: continuísmo escravista à brasileira é enfrentado em longa contundente de Anna Muylaert sobre o caráter da domesticidade feminina nacional

Thainá Campos Seriz
4 min read3 days ago

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Pôster promocional de “Que Horas Ela Volta?” (Pandora Filmes, 2015), longa com direção e roteiro de Anna Muylaert. Foto: reprodução.

Título: Que Horas Ela Volta?
País de origem: Brasil (2015)
Duração: 112 minutos
Gênero: drama; comédia
Direção e roteiro: Anna Muylaert
Produção: Fabiano Gullane, Caio Gullane, Débora Ivanov e Anna Muylaert
Fotografia: Bárbara Alvarez
Montagem: Karen Harley
Trilha sonora: Vitor Araújo e Fábio Trummer
Direção de arte: Thales Junqueira
Figurino: Cláudia Kopke e André Simonetti
Desenho de som: Gabriela Cunha
Distribuição: Pandora Filmes
Elenco: Regina Casé, Camila Márdila, Karine Teles, Michel Joelsas, Lourenço Mutarelli

Quando reproduzido às cores locais, o retrato do enfadonho cotidiano de Jeanne Dielman (dir.: Chantal Akerman, 1975) sob a domesticidade é o do desvelamento de uma nunca extinta casa-grande brasileira. Em Que Horas Ela Volta? (Pandora Filmes, 2015), à quase semelhança do homólogo longa franco-belga, a câmera, porquanto estática, fragmenta a inteireza de Valdirene Ferreira, ou Val (Regina Casé), cuja dedicação a Bárbara (Karine Teles), a Carlos (Lourenço Mutarelli) e a Fabinho Bragança (Michel Joelsas) aliena-a das relações familiares outrora abandonadas à fuga da terra natal — restou presumido um passado de violências — . Migrante nordestina e negra, a personagem de Regina Casé seria logo reduzida à penumbra e à inferioridade da claustrofóbica solitária (ver Cruz, 2022) do subsolo do casarão, pois tornada responsável por reproduzir material e emocionalmente os patrões. Pouco ou nada móvel, o mundo de analogia escravocrata desta malfadada plantação (ver Kilomba, 2008) abalar-se-ia, no entanto, à chegada de Jéssica (Camila Márdila), filha da trabalhadora doméstica e jovem de altivez que, inarredável, singraria o falso liberalismo das metonímicas elites progressistas, embora herdeiras, nacionais.

Terceirizado, o trabalho doméstico negro é também o da chocante reprodução socioafetiva da branca descendência. A dedicação integral de Val (Regina Casé) à família Bragança (Karine Teles, Lourenço Mutarelli e Michel Joelsas) aliena-a de suas relações fundamentais e da própria humanidade. Fotos: reprodução.

Ao movimento estabelecido mais dinâmico do cinematógrafo à entrada da vestibulanda na narrativa, a iluminação dos cenários também clarificada emularia a complexidade do caráter então velado das agressões simbólicas e laborais sofridas pela funcionária. De forma não surpreendente, o pertencimento alegado horizontal à branca família traduzir-se-ia no emprego obrigatório de uniformes em recepções domésticas, no desprezo à individualidade e ao tempo sequestrados por disposição ao serviço exigida ininterrupta, no cuidado materno-afetivo terceirizado e mesmo no gaslighting perpetrado em repreensão ao uso de uma louça de café oferecida de bom grado — mencionar o direito negado à herança seria pleonástico? — . Entrementes, a presença desestabilizadora ao status quo de Jéssica engendraria registro sobremaneira insidioso das violações já praticadas contra a mãe, refletindo-se na recusa da partilha de objetos ou de refeições, nos assédios sexuais executados ao patrão quem-toca-a-música-que-todo-mundo-dança-sou-eu, na acintosa hostilidade dos olhares e das falas à adolescente dirigidas ou referentes — a limpeza da piscina foi ordenada ao mergulho de um rato feminino em suas águas — e na pró-ocupação segregada dos espaços — diga a ela para ficar da porta da cozinha para lá — . Por fim, a tentativa antagonista de redução dos feitos, da capacidade intelectual e das escolhas profissionais da citada contraparte afigurar-se-ia trágica, se cômica não fosse, a tomar-se o fracasso do mimado rebento — ou o último grande intelectual do século (contém ironia) — no vestibular e o intercâmbio contratado para afugentá-lo.

Se o desafio à ordem constitui-se autodefinidor, o confronto mãe e filha refundaria a dignidade de ambas as trajetórias ante o esforço malogrado de rearranjo das hierarquias racial e de classe. Comunicada com clareza, a demissão efetiva-se medida emancipatória e de refazimento do maternar interrompido na década anterior. Anos de trabalho deveriam forjar possibilidades além-sobrevivência, e o exemplo oferecido nos 112 minutos da produção realizada por Anna Muylaert enfrenta as continuidades (não reparadas) da escravocracia colonial do país. Liberdade maior, conclua-se, é conquistar senso de futuro refeito ao poder da história e da (re)descoberta da descendência.

A chegada de Jéssica (Camila Márdila, à esquerda) desvelaria as estruturas da casa-grande brasileira e singraria o falso progressivo das brancas elites liberais do país. Foto: reprodução.

Revisto no Clube do Crítico 26.

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Thainá Campos Seriz

Historiadora (UFF). Pesquisa e revisão de conteúdo no Canal Preto. Podcaster no ObSessões de Cinema.