O Piano: forma artística é espaço de realização silenciosa, porém potente da intelectualidade de mulheres em clássico do cinema de Jane Campion

Thainá Campos Seriz
4 min readJun 3, 2024
Pôster promocional de “O Piano” (título original: “The Piano”, 1993) (Paris Filmes, 1994), longa com direção e roteiro de Jane Campion. Foto: reprodução.

Título original: The Piano
Países de origem: Nova Zelândia, Austrália e França (1993)
Duração: 115 minutos
Gênero: drama; romance
Direção e roteiro: Jane Campion
Produção: Jan Chapman
Fotografia: Stuart Dryburgh
Montagem: Veronika Jenet
Trilha sonora: Michael Nyman
Figurino: Janet Patterson
Distribuição (Brasil): Paris Filmes
Elenco: Holly Hunter, Harvey Keitel, Sam Neill, Anna Paquin

Ponto de aproximação particular com a filmografia de Jane Campion é, confesso, o fazer musical frustrado desde a infância. O saber outrora vedado torna-se expressão dolorosa permanente, e viabilizar o sentir por formas artísticas outras compõe matéria fundamental ao viver. Por arte, neste sentido, a realização audiovisual efetiva-se materialidade da vida refeita à dor.

Traumática, a chegada de Ada (Holly Hunter) e de Flora McGrath (Anna Paquin) à Nova Zelândia envolve a inadaptação e o choque interculturais potencializados in loco entre o assombro ao arbítrio gênero-colonial vitoriano (1838–1901). Fotos: reprodução.

Em O Piano (título original: The Piano, 1993) (Paris Filmes, 1994), a escocesa Ada McGrath (Holly Hunter) permite-nos o acesso à voz interior na partilha retrospectiva de operação da agência da própria história. Tendo perdido a capacidade oralizadora aos seis anos de idade, McGrath mediaria sua relação com o mundo por meio do instrumento-título do longa. Por decisão paterna, junto à filha Flora (Anna Paquin), a protagonista é enviada à Nova Zelândia vitoriana para esposar Alistair Stewart (Sam Neill), um colono natal. Dadas as dificuldades de travessia do piano de propriedade de Ada M. até a nova morada da família, a negligência marital ante o pronto traslado do objeto engendraria fissura constatada incontornável ao relacionamento estabelecido compulsório. Paralelamente, os interesses além-eruditos do administrador George Baines (Harvey Keitel) levam-no a adquirir o item que prometeu devolver, caso aprendesse com as lições da nubente a tocá-lo.

Os constantes travellings empregados à decupagem ressaltam entre a profundidade de campo ampliada o isolamento e o escrutínio cruéis sofridos pela personagem de Holly Hunter, a quem a acintosa vigilância equipara(r-se-á) à opressão de gênero. A considerar-se o silenciamento sintoma sociopsicológico fundante das feminilidades hegemônicas, a interposição do trabalho de si (Foucault, 1984) sob esforço intelectual aniquilador da linguagem faz do recurso artístico tentativa de exercício agente sobre a realidade (Lorde, 1977). Integrante outro da geografia afetivo-relacional mobilizada por Campion, o colonialismo britânico no Pacífico realiza-se igual condição sobredeterminante à política das assimetrias verificada, enquanto a disputa fundiária sintetiza a violência simbólico-territorial do patriarcado racialista contra a pluralidade humana. Antes coletiva, a punição à pianista compreende a resiliência forjada em denúncia ao arbítrio gênero-colonial antiexperimentação interna via sexo, desejo e amor. Por fim, a morte vinculada à desautorização discursiva das mulheridades associa-se ao continente de sepultamento genocida, porquanto criminoso, dos sonhos e das almas sequestrados à razia homoimperialista (ver Preciado, 2017) de quaisquer naturezas.

Às inconvenientes lições de piano arrancadas de Ada McGrath (Holly Hunter) pelo administrador George Baines (Harvey Keitel), a escuta faz inflexionar o desejo dos agora constituídos amantes. A ira de A. Stewart (Sam Neill) é antes punição pela agência protagonista de McGrath sobre os próprios interesses. Fotos: reprodução.

Em nexo talvez contraditório ao inicial, o alcance da elocução de quereres autocentrados depende do cultivo do silêncio como espaço enunciativo da intelectualidade, conforme aventado por Virginia Woolf (1882–1941) em Um Teto Todo Seu (título original: A Room of One’s Own, 1929). Quando impenetrável a intercorrências limitantes e pró-performance exteriores, apenas o som da criação, e da criação organizada, de matriz feminina advirá. O realizar cinematográfico da diretora neozelandesa emula a queda da pátria interdição à autoria de mulheres, e o cinema mimetiza o oceano mesmo impermeável ao som não individual da existência desejada possível.

Revisto no Clube do Crítico 26.

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Thainá Campos Seriz

Historiadora (UFF). Pesquisa e revisão de conteúdo no Canal Preto. Podcaster no ObSessões de Cinema.