Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre: direito ao aborto é tema tangencial de contundente longa de Eliza Hittman sobre misoginia médica, objeções da consciência patriarcal quanto à garantia de direitos sexuais e reprodutivos e sororidade

Thainá Campos Seriz
4 min readJun 18, 2024

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Pôster promocional de “Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre” (título original: “Never Rarely Sometimes Always”) (Focus Features, 2020), longa com direção e roteiro de Eliza Hittman. Foto: reprodução.

Título original: Never Rarely Sometimes Always
País de origem: Estados Unidos (2020)
Duração: 101 minutos
Gênero: drama
Direção e roteiro: Eliza Hittman
Produção: Sara Murphy e Adele Romanski
Fotografia: Hélène Louvart
Montagem: Scott Cummings
Trilha sonora: Julia Holter
Direção de arte: Meredith Lippincott
Figurino: Olga Mill
Distribuição: Focus Features
Elenco: Sidney Flanigan, Talia Ryder, Sharon Van Etten, Théodore Pellerin, Kelly Chapman

Apresentações escolares parecem ser fontes traumáticas para Eliza Hittman, ou tão só ritualizam passagens dolorosas. Em Parece Amor (título original: It Felt Like Love, 2013), entre uma rotina coreográfica, Lila (Gina Piersanti) encenaria a própria morte, pois subjugada ao luto e ao apelo da performance sexual de gênero. À intertextualidade e via continuum, Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre (título original: Never Rarely Sometimes Always) (Focus Features, 2020) processa a sanha violadora antimulheridades perceptível no quase assassinato da sociedade ao futuro e à autodeterminação mulheris.

Sob o olhar cuidadosa, a solidariedade empática e o consolo da prima-amiga Skylar (Taila Ryder), Autumn Callahan (Sidney Flanigan) persegue o direito negado ao aborto na Pensilvânia natal. Fotos: reprodução.

À semelhança daquela menina de 14 anos, a talentosa Autumn Callahan (Sidney Flanigan) inspiraria visão enlutada de dor por ora não conhecida, a despeito do amarelo algo vibrante do agasalho vestido. Atordoada com a possibilidade da gravidez em terna idade — revelada decorrente de um estupro — , a jovem consegue confirmar a suspeita enquanto tenta encontrar soluções. Silente acerca do resultado, sem o apoio materno e constrangida no auxílio médico, Autumn C. decide partir da Pensilvânia natal à procura do serviço de abortamento. À paleta de tons frios predominante em tela, os hiperfocos (zoom-ins) da fotografia de Hélène Louvart sugerem psicologia e motivações narrativas às escolhas das personagens, bem como antecipam imagens e ações.

Já na variação aplicada à decupagem de planos médios e de close-ups, o sufocante enquadramento da personagem de Sidney Flanigan ambienta a claustrofobia de uma solitária implosão emocional em curso. Atenta às mudanças experienciadas e uma vez compreendida a cifrada mensagem sobre a condição da prima, de forma contundente, Skylar (Talia Ryder) decide acompanhar a também amiga na viagem à cidade de Nova Iorque e ser-lhe, além de apoio, consolo. Ao contrário da protagonista, Hittman faz-se vocal a respeito das modalidades de violências (laborais, familiares, interpessoais e institucionais) e de categorias de assédios impostas à dupla em meio a um inferno de tipo conradiano (1899; 1902). Antes mesmo de revogada a histórica decisão de Roe v. Wade (1973; 2022), a excrescente, senão contraditória, objeção de consciência alegada por profissionais de saúde no atendimento a mulheres e a pessoas com útero em busca do aborto parece autorizar, no entanto, o cerceamento revitimizatório e o conhecimento de informações falsas.

Ilegal e passível de criminalização, a mentira propagada adiou o socorro a alguém em sofrimento, ao que poderia ser fatal, tamanho o ímpeto pró-vida da canalha replicadora misógina. Momento mais penalizador da redentora peregrinação assistida é o da explosão não obstante controlada de A. Callahan ante a psicóloga (Kelly Chapman), cujas perguntas desvelariam o título do longa e o abuso sofrido. Sororária ou apenas uma servidora, destaque-se a empatia e a presença solidária de Skylar em tamanha, pois construída, adversidade. Comprovado por pesquisas, o saber prévio de uma gestação leva à célere procura do recurso e, se desejo fosse preservar vidas de facto, nenhuma dificuldade anterior ao aventado tempo de uma viabilidade fetal seria imposta.

Na jornada conradiana (1899; 1902) trilhada pela dupla, a sororidade retroalimentada protege-as da expectativa da violência e dos assédios violadores, bem como reforça a importância de uma empatia finalmente solidária à escolha antes pela permanência. Fotos: reprodução.

A amizade feminina é vetor elementar da permanência em coletividade, e sua ausência, causa, ou consequência, do fim. Se a redução à apatia e ao jugo do branco patriarcado realiza-se inviabilizadora do alcance à plenitude das constituídas dissidências, a solidariedade às e das diferenças perfaz potente política afetiva. A autoria em cinema pode efetivar-se sobremaneira revolucionária, e Never Rarely Sometimes Always é dos filmes inspiradores à revolução, porque do cotidiano, dos afetos.

Visto no Clube do Crítico 26.

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Thainá Campos Seriz

Historiadora (UFF). Pesquisa e revisão de conteúdo no Canal Preto. Podcaster no ObSessões de Cinema.