Nimona: animação oportuniza crítica aberta aos supremacismos pela representação positivada de dissidências de gênero e de afetividade
Título original: Nimona
País de origem: Estados Unidos e Reino Unido (2023)
Duração: 102 minutos
Gênero: aventura; fantasia; animação
Direção: Nick Bruno e Troy Quane
Roteiro: Robert L. Baird e Lloyd Taylor
História: Robert L. Baird, Lloyd Taylor, Pamela Ribon, Marc Haimes, Nick Bruno, Troy Quane e Keith Bunin
História original: ND Stevenson (2015)
Produção: Roy Lee, Karen Ryan e Julie Zackary
Montagem: Randy Trager e Erin Crackel
Trilha sonora: Christophe Beck
Distribuição (Brasil): Netflix
Elenco: Chloë Grace Moretz, Riz Ahmed, Eugene Lee Yang, Frances Conroy, Lorraine Toussaint
A apropriação inteligente de certo consagrado universo para a virada subversiva de Nimona (Netflix, 2023) rumo a uma clivagem completa faz da presente produção novidade ao processo em curso de esvaziamento de causas relevantes. A partir da abordagem narrativa clássica de contos medievais, logo à abertura, o Reino retrofuturista de Gloreth revelar-se-ia o da superação das trevas, cuja histórica ameaça à paz dos tomados habitantes originais fora vencida ao triunfo da luz no último milênio. Sob código moral restrito e à transgeracionalidade, apenas aos formados cavaleiros reais seria investida a gloriosa tarefa de proteção do legado glorethiano, pois antes vocacionados pelo nascimento. Neste ínterim, Ballister Boldheart (dublado por Riz Ahmed), advindo das classes populares, era a aposta da Rainha Valerin (dublada por Lorraine Toussaint) na diversidade, quando seu terrível assassinato transforma-o em algoz.
Se a oposição anterior ao nome de Boldheart caracterizaria uma contrarreação conversadora e pró-meritocrática do establishment à mobilidade social intergrupos, a homoafetividade do herói perfazia-se marcador renovado de opressão. Concorrente ao inicial declínio fabricado, a chegada de Nimona (dublada por Chloë Grace Moretz) agregaria ao trágico momento pessoal de Ballister hilárias aventuras e o reconhecimento então negado da própria humanidade. Ao arranjo único de técnicas 2D e 3D de animação combinadas, o uso expressivo das cores assume a sondagem psicológica das personagens: dada a associação de Balli com a malignidade de um desconhecido inescrutável à abertura à diferença, os tons escuros constroem-lhe o temor e a desconfiança; em outra vaga, porque epítome do quase autoatribuído direito biológico de salvaguarda do reino pela nobiliarquia, a Diretora (dublada por Frances Conroy) e Ambrosius Goldenloin (dublado por Eugene Lee Yang) têm figurinos e cenários coloridos em branco e em dourado. Goldenloin, diga-se, atravessa a heterocissexualidade normativa consecutivamente inferida ao exame do ethos cavaleiresco, não obstante o assédio ao status quo e à ascendência faça-se constante. A alegoria é evidente: o reinado desvelado de terror de Gloreth faz-se metáfora aos supremacismos racial, de gênero, de classe, de território e de sexualidade informadores das fobias às dissidências.
Enquanto a recusa a uma performance genderizada rende o ostracismo societário a Nimona, a transformação da coprotagonista em diversas espécies animais pode vincular-se à monstruosidade da ruptura com o teatro das hegemonias, à reivindicação de uma resistência antidominação agente e à pluralidade das formas de ser, de estar e de fazer vedada às expressões não masculinas. Coerente, a variação intencional do emprego do vermelho ora tinge a raiva da personagem-título ante a não aceitação ao mundo de quem se é e a compulsoriedade de um exercício performático de gênero, ora a redenção, considerando-se a chance oportunizada por B. Boldheart de ser amada e respeitada como existe. Também modificado à amizade com a comparsa, o encontro dos iguais dissidentes (em gênero e em sexualidade) possibilitou a Ballister libertar-se da solidão a que não viver abertamente o amor por Ambrosius condená-lo-ia, e a Ninoma, além de superar o passado traumático de rejeição, reescrever a história individual.
Adaptada a belíssima HQ de autoria de ND Stevenson (2015) ao cinema, fica em parte reparada a visão não positivada de quaisquer pertenças e identidades às novas gerações. Com direção de Nick Bruno e de Troy Quane e roteiro de Robert L. Baird e de Lloyd Taylor, Nimona está indicado ao Oscar 2024 de Melhor Animação em Longa-metragem e pode ser conferido no streaming (Netflix).