Mussum, o Filmis: dignidade é poder, com a própria história, fazer escolhas
Título oficial: Mussum, o Filmis
País de origem: Brasil
Duração: 117 minutos
Gênero: drama biográfico
Direção: Silvio Guindane
Roteiro: Paulo Cursino
Produção executiva: Cacala Carvana e Angelo Gastal
Produção: André Carreira
Direção de fotografia: Nonato Estrela
Montagem: André Simões
Direção de arte: Rafael Targat
Empresa produtora: Camisa Listrada
Empresas coprodutoras: Globo Filmes, Globoplay, Telecine, RioFilme e Panorama Filmes
Distribuição: Downtown Filmes
Elenco: Ailton Graça, Yuri Marçal, Thawan Lucas, Cacau Protásio, Neusa Borges, Jeniffer Dias, Késia, Cinara Leal, Ícaro Silva, Gero Camilo, Vanderlei Bernardino, Felipe Rocha, Gustavo Neder
Confesso ter aguardado ansiosa a oportunidade de assistir a Mussum, o Filmis (Downtown Filmes, 2023), com direção de Silvio Guindane e roteiro de Paulo Cursino em adaptação à biografia de Mussum — Uma história de humor e samba (HarperCollins, 2023), de autoria de Juliano Barreto. Minha relação com Antônio Carlos Bernardes Gomes (1941–1994), ou Carlinhos do reco-reco, ou Mussum, data de tenra idade, a partir da audiência às esquetes de Os Trapalhões (1974–1995) influenciada por meu pai. Com o tempo, durante minha imersão acadêmica pela MPB, abandonei o ícone da TV para alcançar o instrumentista d’Os Originais do Samba (1960) e, exatamente pelo contato com Antônio Carlos, decidi afastar Mussum. Carlos não gostava do nome por que seria eternizado na telinha, antes atribuído por Grande Othelo (nascido Sebastião Bernardes de Souza Prata, 1915–1993) de forma pejorativa, não obstante a impressão negativa tivesse sido desfeita. Afora os apelidos de cunho racista, a seguir, por sugestão de Chico Anysio (nascido Francisco Anysio de Oliveira Paula Filho, 1931–2012), Mussum incorporaria o sufixo -is a cada uma de suas palavras, querendo, por obra do autor (branco), intencionalmente ou não, denotar a imperícia de pessoas negras sobre o idioma, porque incapazes de bem-falar o português — aqui, faço alusão ao pretoguês (1984) exortado na literatura de Lélia González (1935–1994) — . O estereótipo do beberrão e do preto escandaloso e a ridicularização, em especial, da personagem eram tônicas da atuação de Mussum e, embora não exploradas, tampouco citadas no filme, desempenharam papel importante na saída de Antônio Carlos da trupe e da cisão final do grupo. No entanto, pelo excelente trabalho de roteiro, felizmente, a dupla Guindane-Cursino rearticulou em complexidade a obra de Carlinhos (Thawan Lucas), filho de D. Malvina (Cacau Protásio e Neusa Borges), em performances sublimes de Ailton Graça e de Yuri Marçal como o nosso protagonista. Aliás, qual protagonista de sua história, Antônio Carlos, sambista de Mangueira, é relembrado aqui, em honra ao projeto escolhido da própria vida, ao contrário da tragédia de homens negros na diáspora afro-brasileira.
Além das cores vibrantes, em alguns planos subjetivos (com a câmera certa feita de baixo para cima), consegui ver, nos traços de Graça, Antônio Carlos. O longa, iniciado com a notícia da internação da mãe entre o que se revelou no decorrer da trama ser a gravação de uma das últimas esquetes de Mussum enquanto membro do quarteto coformado por Renato Aragão (nascido Antônio Renato Aragão) (Gero Camilo), Dedé Santana (nascido Manfried Sant’Anna) (Felipe Rocha) e Zacarias (nascido Mauro Faccio Gonçalves, 1934–1990) (Gustavo Neder), desenrola-se, então, com o retorno à infância e à carreira militar, culminando com o sucesso d’Os Originais do Samba, com a aparição inaugural na TV, com a logo posterior participação na Escolinha do Professor Raimundo e, por fim, com a chegada n’Os Trapalhões. Sem dúvidas, destacaria a qualidade do roteiro como transposto em imagem, mas ainda estou comovida com a descortinada relação mãe-filho. Minha pregressa incompreensão com o descompasso entre o ícone e o musicista chegou a termo, exatamente pelo mergulho, agora, nas relações interpessoais de Antônio Carlos. Todas as escolhas profissionais do protagonista giraram em torno da segurança financeira da família contra as privações outrora enfrentadas na pobreza: estar à frente da telinha garantiria mais visibilidade ao grupo musical, àquele momento, seu único sustento, o de sua mãe, o das duas companheiras (Jeniffer Dias, Késia e Cinara Leal) e o dos filhos; ter de abandonar Os Originais do Samba para focar em fazer televisão garantiria, em algum tempo, a aposentadoria e, de novo, a salvaguarda do núcleo mais próximo e dos cuidados de D. Malvina. Entre as linhas faladas, os diálogos bem-humorados complexificam um debate doloroso acerca dos efeitos do racismo antinegro sobre os destinos pessoais e profissionais de pessoas negras no Brasil.
Porque não branco e não herdeiro, alternativa podia não haver: boa é a profissão que traz dinheiro para dentro de casa, coloca comida no prato e guarda um teto acima da cabeça. Por isso, a não educação ou a mediocridade não são opções a quem tem a pele preta. Sacrificam-se sonhos, habilidades, aptidões e desejos pela sobrevivência, esta também revolucionária, diga-se. Quanto a Antônio Carlos, constatamos a persistência, a coragem, a altivez e o acolhimento a quem era/poderia ser, e sua existência não realiza falácias meritocráticas — A. Carlos não partiu do mesmo lugar e, se não sucumbiu, a força individual e a da coletividade imediata são a explicação — . D. Malvina compreendeu a importância de escolhas reais para a emancipação financeira e para a autodeterminação e legou-a a Carlinhos, o qual só ousou sonhar, porque apreendeu possível o sonho. As duas últimas cenas sintetizam o poder do futuro enquanto possibilidade, assim ancorado no presente referencial da ancestralidade em vida.
Mussum, o Filmis relembra-nos de nosso papel na construção de presente e de futuro possíveis, pois ancorados na dignidade da história. Creio ser este longa digno do legado da intelectualidade negra de homens no país-inferno Brasil.
Assistido no Festival do Rio, o longa biográfico estreia em 2/11 no cinemas brasileiros.