Missão: Impossível — Acerto de Contas Parte Um: a escolha é pela ação coletiva
Direção: Christopher McQuarrie
Produção: Tom Cruise, David Ellison, Christopher McQuarrie
Roteiro: Christopher McQuarrie e Erik Jendresen
Edição: Eddie Hamilton
Trilha sonora: Lorne Balfe
Elenco: Tom Cruise, Hayley Atwell, Ving Rhames, Simon Pegg, Rebecca Ferguson, Vanessa Kirby, Pom Klementieff, Esai Morales, Henry Czerny
As insistentes reelaborações da Guerra Fria no cinema estadunidense chegam a ser imaginativa e até esteticamente fascinantes de ver criadas (de ver, não de viver, e América Latina, África e Ásia podem falá-lo), porque nada menos do que paranoico pode definir o contínuo movimento da reencenação de um conflito do qual se saiu, digamos, “vencedor” (ao menos, em teoria). A ameaça real à hegemonia nuclear — em verdade, dissuasor diplomático de constrangimento à subserviência de um ou de outro modelo societário (capitalista e comunista) em escala planetária — imposta por poder tão contundente quanto o próprio teve efeito patológico sobre o pensamento político médio do país norte-americano. A série Missão: Impossível não fugiu à regra, mas criou algo distinto da estereotipia do mal soviético. Se grande parte das tramas ambientara-se em Leste Europeu, em disputa, outro ator era igualmente escrutinado em cena: o mesmo governo (EUA) dito representante dos agentes de inteligência e de campo. O destino manifesto da salvaguarda do mundo nas narrativas aí centradas é inevitável — tampouco, o papel do homem branco o qual, em rebelião ao sistema opressor, visa ao bem comum e, por isso, age às escondidas uma vez convocado — , mas a franquia não permaneceu infensa ao mundo extratelas — e esta é uma das razões de tamanhas longevidade e popularidade — .
Se o temor pela hecatombe nuclear ditou o ritmo de, por exemplo, Rogue Nation (Nação Secreta) e Fallout (Efeito Fallout), neste Dead Reckoning (ou Missão: Impossível — Acerto de Contas Parte Um, 2023), o fim do mundo tem, aqui, contornos digitais, ou pior, atuais. Uma inteligência artificial (IA) denominada Entidade (como a divindade por que é tratada entre seus contemporâneos) ganhou autonomia e prometeu a captura da vida de todo o globo em rede para a manipulação da verdade ao prazer (e ao desejo de jugo) dos interesses do governo a quem pudesse aliar-se, evitando a própria destruição. Seu controle significa o controle mesmo do mundo, e a Ethan Hunt (Tom Cruise), caso escolhesse aceitar a missão, caberia evitá-lo. Aliás, a escolha pela ação, ou pela inércia, diante do fim da existência como conhecida e da verdade enquanto princípio básico das relações humanas — e do consenso político — foi a tônica do prometido acerto de contas de Hunt com a trajetória de três décadas construída em sua atuação na Força Missão Impossível (IMF, em inglês) — sobretudo frente às perdas de outras vidas acumuladas — , com a caminhada escolhida junto a Benji (Simon Pegg) e a Luther (Ving Rhames) e com a possibilidade do romance a realizar (nunca bem-sucedido) com Ilsa Faust (Rebecca Ferguson).
Além de questão contingencial, em razão das filmagens ainda em período pandêmico, o emprego quase excessivo de close ups, planos médio e holandês (inclinados) é também estético: objetivos, angústia, amor, raiva, crueldade e esperança devem ser prontamente fitáveis. As cenas de ação de tirar o fôlego, como usuais para Tom Cruise, conferem o nível de importância, e de algum desespero, pela consecução do que se pretende impedir. Ademais, vale dizer: o desenho sonoro da trilha de Lorne Balfe para Dead Reckoning (parte I) é além-precisão; é beleza.
A parceria Tom Cruise e Christopher McQuarrie é uma das mais afinadas do cinema de gênero, pois elegante e com primor técnico. Certa recorrência temática, acho, atém-se ao fazer-se inteiramente compreender — e é crucial entender a gravidade do que se enfrenta/estamos enfrentando fora da grande tela — . A chegada de Hayley Atwell (Grace) é grande acerto cômico e (cirurgicamente) dramático ao bom roteiro de C. McQuarrie e Erik Jendresen sobre a necessidade de uma ação rápida e coletiva, porque consensuada, em torno da garantia de um futuro também comum a existir/a construir-se.
No fim, Tom Cruise parece ter, de fato, salvado o cinema. Contém ironia.
Voltem aos cinemas, pois é lá que a parte dois desta (aparente) missão final de Ethan Hunt merece ser vista.