Marinheiro das Montanhas: o partida rumo ao fim é retorno à origem já conhecida de nós mesmos

Thainá Campos Seriz
4 min readOct 3, 2023

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Pôster oficial de “Marinheiro das Montanhas”, de Karim Aïnouz. Foto: reprodução.

Título original: Marinheiro das Montanhas
Países de origem: Brasil, França, Alemanha e Argélia
Duração: 98 minutos
Gênero: documentário
Direção: Karim Aïnouz
Roteiro: Murilo Hauser e Karim Aïnouz
Produção: Walter Salles, João Moreira Salles, Maria Carlota Bruno, Marie-Pierre Macia, Claire Gadéa, Jihan al-Tajri, Jennifer Sabbah-Imaggine, Karim Aïnouz, Christopher Zittebart
Trilha sonora: Benedikt Schiefer
Direção de fotografia: Juan Sarmiento G.
Montagem: Ricardo Saraiva e Alice Dalgalarrondo
Realização: VideoFilmes e Watchmen Productions
Distribuição: Gullane Filmes
Elenco: Karim Aïnouz

Particularmente, aguardava ansiosa a chegada aos cinemas brasileiros de Marinheiro das Montanhas (Gullane Filmes, 2021), documentário com direção de Karim Aïnouz e roteiro de Murilo Hauser e de Karim Aïnouz o qual aborda o retorno do diretor cearense à Argélia natal do pai para desvelar não apenas as origens paternas como a si mesmo no mundo. Entre fotografias, outros registros em vídeo do próprio acervo pessoal e imagens captadas na capital do país norte-africano, nas paisagens de Cabília (Kabylia) e nas montanhas do vilarejo de Taguemount Azuz (em tamazight, Tagemmunt Ɛezzuz), Aïnouz Karim faz a travessia pelo Mar Mediterrâneo até Argel na companhia (imaginária) de Iracema, sua saudosa mãe, para quem dirige a carta narrada em voice over a respeito da decidida viagem. Então aos 54 anos, Aïnouz realizou o caminho de volta ao encontro das raízes em África e do genitor, que, décadas atrás, prometeu buscar companheira e filho no Brasil, após o fim do período de mestrado de ambos nos EUA, onde se conheceram, e o retorno aos respectivos países de nascimento. Singrar o mar em busca do desconhecido leva-nos, ao contrário, à releitura do passado-presente já amado e já conhecido, porém sob outras lentes e sob nova maturidade.

À esquerda, Majid Aïnouz, pai de Karim Aïnouz. Atualmente, Aïnouz Maijd mora em Paris. À direita, está Iracema, a saudosa mãe de Karim Aïnouz. Foto: divulgação.

O uso da fotografia analógica para retratar o cotidiano do percurso marítimo de chegada à capital argelina figura recurso à memória (materna) enquanto tentativa de aplacar certa angústia do encontro com o que poderia ter sido da vida da família apartada pelo destino e pela mágoa entre um oceano criado de distância. Já a fotografia digital do diário de viagem em Argel, em Cabília e mesmo em Taguemount Azouz ilustra a história ora colorida do futuro prometido, porque sonhado, de liberdade das amarras coloniais na Guerra de Independência (1954–1962) — o vermelho-sangue predomina qual indicativo do sacrifício dos mártires na aurora de um novo país ao povo argelino — , ora monocrática da promessa de um presente-futuro sem mazelas não cumprida e dos limites mesmos de uma vida distante nas montanhas da interiorana Cabília. O cinza, o azul e o marrom do subir das colinas do vilarejo de Taguemount Azuz revelariam não só o passado jamais saído de seu tempo pela novidade da (re)descoberta familiar, apesar da opacidade de cores e de perspectivas, como também, e exatamente por isso, a força da vida construída com a mãe e com a avó na Fortaleza da infância e da adolescência ante a presença esquecida, ausente de Majid Aïnouz.

A curiosidade, o estranhamento e/ou a familiaridade de Aïnouz com nacionais argelinos e argelinas constituem-se parcela integrante da identidade de pessoas marrons de ascendência árabe, ou ainda amazigh (indígena norte-africana), caso de nosso diretor, no Brasil. Como descendente árabe-levantina (palestina e sírio-libanesa), experencio eu também o desejo de retorno nunca vivido a uma existência menos hostil em outro país o qual não insista em não reconhecer minha cultura, estrangeirizada que é/foi tornada. O simples vislumbre de reexistir entre as minhas e os meus na minha língua é alento e desalento, pois o sei impossível. Por outro lado, fazer a travessia de volta não me torna familiar, mas alguém simpática, estrangeira. Em outras palavras, volto ao início, ou à identidade diaspórica, este limbo.

A ida a Taguemount Azouz promoveu o encontro de Karim Aïnouz com alguns de seus parentes da linha paterna. Fotos: divulgação.

Para Aïnouz, a ida rumo ao desconhecido familiar foi o retorno à vida já sabida e forjada na/pela ausência. Desconfio vivermos processos similares, cada um sob origem e geração distintas. Minha ansiedade devia-se à busca, além de uma referência, da conversa sobre algo em comum de que não precisasse justificar a importância. Acredito tê-las encontrado. Agora, resta-me atravessar o mar de volta às montanhas.

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Thainá Campos Seriz
Thainá Campos Seriz

Written by Thainá Campos Seriz

Historiadora (UFF). Pesquisa e revisão de conteúdo no Canal Preto. Escrevo sobre cinema.

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