Jeanne Dielman: corpo e desejo desvelam-se possibilidades de subversão à domesticidade e ao jugo afetivo patriarcal em longa seminal do cinema de Chantal Akerman

Thainá Campos Seriz
3 min readJun 24, 2024

--

Pôster promocional de “Jeanne Dielman” (título original: “Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce, 1080 Bruxelles”, 1975), longa com direção e roteiro de Chantal Akerman (1950–2015). Foto: reprodução.

Título original: Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce, 1080 Bruxelles
Países de origem: Bélgica e França (1975)
Duração: 201 minutos
Gênero: drama
Direção e roteiro: Chantal Akerman
Produção: Corinne Jénart e Evelyne Paul
Fotografia: Babette Mangolte
Montagem: Patricia Canino
Direção de arte: Philippe Graff
Maquiagem: Éliane Marcus
Distribuição (França): Olympic Films
Elenco: Delphine Seyrig, Jan Decorte, Henri Storck, Jacques Doniol-Valcroze, Yves Bical

Certamente amplo, o apartamento-cenário deste longa dirigido e roteirizado por Chantal Akerman (1950–2015) vislumbra-se claustrofóbico. À semelhança do imobilismo castista da genderizada economia patriarcal, a câmera estática emula o solitário, pois aprisionador, cotidiano de Jeanne Dielman (Delphine Seyrig) sob a domesticidade. Resignada ao cuidado do lar, a personagem-título da produção (título original: Jeanne Dielman, 23, quai du commerce, 1080 Bruxelles) (Olympic Films, 1975) faz desvelar entre muito comedidos (autorreprimidos) gestos a queda não evitável ao destino antes reprodutor do jovem filho Sylvain (Jan Decorte), cuja imanente apatia ainda será reivindicada castradora.

Viúva, Jeanne Dielman (Delphine Seyrig) aferra-se solitariamente ao cuidado do lar constituído com o filho Sylvain (Jan Dacorte), símbolo da continuidade patriarcal, enquanto o trabalho sexual vespertino perfaz a sobrevivência econômica da dupla. Fotos: reprodução.

Equilibrado com a dedicação ao trato doméstico, o trabalho sexual exercido refunda-se esfera opressiva, porquanto metonímico da superexploração laboral da força feminina ao sequestro do corpo e do desejo. Não obstante assimilada ao pertencimento ostracizante (nacionalista francês) das etnicidades e ao gênero dissidente, o apagar quase obsessivo das luzes dos cômodos do imóvel onde vivem genitora e prole revelaria certa ansiedade por obliterar-se Dielman ante a existência identificada ameaçadora à ordem, se a travessia realizada às portas fechadas e a abertura insistente da caixa do correio não simbolizassem movimento a forjar-se agente de mudança. Notado aos cabelos maternos algo desgrenhados, ao botão secundário não atado do roupão e ao esquecimento das batatas, o já latente desequilíbrio socioafetivo-familiar — dada a substituição de figuras patriarcais — afigura-se-ia material à rotina então mobilizada inalterável.

Perturbada, aquela incólume resignação transmuta-se em apreciadora do silêncio e da solitude contemplativa, ao que a disponibilidade do toque compreende nova agência à vida. Assumido o caráter, enfim, violador da transgressão operada por um amante ao sexo (pago) ou por categoria diversa de atores misóginos inconscientes nos limites agora restabelecidos de dignidade, a resposta antidominium efetivar-se-á violenta em igual medida. Definidor, o alívio manifesto é linguagem disruptiva de ação pela permanência, e a tal impulso, Akerman entregaria cinema sui generis sobre a autodeterminação de mulheres.

De forma espontânea, a letargia da domesticidade, bem como do desequilíbrio socioafetivo-familiar, rompe-se e, à contemplação e à solitude recuperadas, J. Dielman (Delphine Seyrig) refaz-se agente de transformação da própria história. Fotos: reprodução.

Visto no Clube do Crítico 26.

--

--

Thainá Campos Seriz
Thainá Campos Seriz

Written by Thainá Campos Seriz

Historiadora (UFF). Pesquisa e revisão de conteúdo no Canal Preto. Escrevo sobre cinema.

No responses yet