Incompatível com a Vida: dignidade e bem-morrer deveriam ser princípios de reconhecimento do direito à vida

Thainá Campos Seriz
3 min readNov 15, 2023

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Pôster promocional de “Incompatível com a Vida”, longa documental com direção e roteiro de Eliza Capai. Foto: divulgação.

Título: Incompatível com a Vida
País de origem: Brasil
Duração: 92 minutos
Gênero: documentário
Direção e roteiro: Eliza Capai
Produção: Mariana Genescá
Montagem: Daniel Grinspum
Direção de fotografia: Janice D’avila
Direção de fotografia (gravidez da diretora): Eliza Capai e João Pina
Trilha sonora: Decio7, com participação especial de Juçara Marçal
Empresa produtora: tva2.doc
Distribuição: Descoloniza Filmes

muito não apreciava uma produção tão sensível como Incompatível com a Vida (Descoloniza Filmes, 2023), longa documental com direção e roteiro de Eliza Capai acerca de maternidades uma vez deparadas com o diagnóstico de incompatíveis com a vida, ou seja, gestações de fetos cuja existência, em razão de malformações congênitas várias, seria inviabilizada em ambiente extrauterino. De backgrounds socioeconômico-raciais, religiosos e regionais distintos, as entrevistadas comentam em depoimentos intercalados por intervenções artísticas e por imagens de acervo pessoal a dor do luto e o drama eventualmente representado pela não legalização irrestrita do aborto frente à garantia de direitos sexuais e reprodutivos — neste caso, de uma interrupção voluntária — , a considerar o prognóstico de não sobrevivência fetal. Queira-se ou não, o debate inferido impõe-se, a despeito de filiações outras não concernentes ao debate sobre saúde pública, dada a possibilidade de uma gravidez continuada à revelia do desejo de mulheres e de pessoas gestantes — uma violação à dignidade humana, portanto, qual prevista na Carta Constitucional de 1988 — , do risco à vida de parturientes e/ou da manutenção inglória de uma eventual vida já levada a termo no ventre.

Em cena, o dia do diagnóstico da gravidez “incompatível com a vida” da diretora e roteirista Eliza Capai. Foto: reprodução.

A ingerência dos fundamentalismos cristãos e a recusa do Estado brasileiro à legislação diversa da matéria chancelam, hoje, o assassinato de uma em cada duas mulheres — majoritariamente, negras e pobres — por aborto inseguro no país e ciclos intergeracionais de sofrimento, pois este medo é, sim, legado a quem tem útero. A morte é um princípio da vida, e um debate maduro sobre o morrer, correlato, aliás, à promoção do bem-viver, evitar-nos-ia mortes desnecessárias e traumatizações decorrentes da incompreensão do luto pela negação ao reconhecimento. O recurso a tomadas externas e ao constante (re)ajuste de foco nos registros em imagem de Capai entre a excelente montagem de Daniel Grinspum é elemento narrativo não apenas poético a uma reconstrução onírica de afetos e de emoções, como fuga necessária, dentro e fora da grande tela, à exposição dolorosa de todos os relatos, incluindo-se o da diretora e roteirista.

Em seis anos ou em um mês e dez dias, a dor da perda ainda é uma constante. Fotos: reprodução.

Como ferramenta de fomento à transformação social, espero que o cinema de Incompatível com a Vida seja nova pedra de toque a discussões reais acerca da proteção à dignidade e à vida das humanidades no Brasil e no mundo.

Vencedor da categoria Melhor Documentário do É Tudo Verdade 2023, destaque da Mostra O Estado das Coisas (Première Brasil) do Festival do Rio e qualificado para os Oscars 2024, a produção estreia nesta quinta-feira, dia 16/11, nas salas escuras brasileiras.

Metáfora ou metonímia de emoções e de afetos diversos, o mar é, aqui, uma constante. Foto: reprodução.

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Thainá Campos Seriz
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Written by Thainá Campos Seriz

Historiadora (UFF). Pesquisa e revisão de conteúdo no Canal Preto. Escrevo sobre cinema.

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