Fitzcarraldo: ambiguidade não declarada pode afiançar apologia ao que se deseja satirizar
Título original: Fitzcarraldo
Países de origem: Alemanha Ocidental e Peru (1982)
Duração: 138 minutos
Gênero: aventura; drama
Direção e roteiro: Werner Herzog
Produção: Roger Corman, Renzo Rossellini, Walter Saxer, Willi Segler, Lucki Stipetic e Werner Herzog
Direção de fotografia: Thomas Mauch
Montagem: Beate Mainka-Jellinghaus
Direção de arte: Ulrich Bergfelder e Henning von Gierke
Trilha sonora: Popol Vuh
Figurino: Gisela Storch
Distribuição: Zeta Filmes
Elenco: Klaus Kinski, Claudia Cardinale, José Lewgoy, Paul Hittscher, Miguel Ángel Fuentes, Huerequeque Enrique Bohórquez, Grande Otelo, Milton Nascimento, David Pérez Espinosa
Fitzcarraldo (Zeta Filmes, 1982) é um Coração das Trevas (Joseph Conrad, 1899) sul-americano. Obcecado por criar uma casa de ópera em Iquitos, na Amazônia peruana, o irlandês Brian Sweeney Fitzgerald (Klaus Kinski) aceita arrendar a travessia entre rios da borracha extraída de parte recém-amealhada do interior da província para financiar uma até então fracassada empreitada. À semelhança do romance conradiano, o longa dirigido e roteirizado por Werner Herzog faz situar ao sentido orientado do cinematógrafo o embate ideológico travado entre o intento da recriação divina do mundo a uma extinta humanidade das cosmologias indígenas (entrada em quadro a partir da direita) e a cruenta jornada civilizatória da empresa colonial branco-europeia novecentista (entrada em quadro a partir da esquerda). Neste sentido, a saga epopeica de Brian “Fitzcarraldo” bem-desvela o caráter bestial, pois a termo degradante da genocida superexploração socioeconômico-ambiental dos povos da floresta e da flora tropical a uma plutocracia pequeno-burguesa aculturada per se.
A (anti)ética de compromisso, aliás, incontornável com a realização dos próprios desejos sintetizada por Fitzgerald perfaz emocional e tematicamente a construção heroica da figura protagonista a quem o sacrifício tornado unilateral à concretude de herculana iniciativa será recompensado com o triunfo da vontade dos grupos aí representados. Se os planos abertos reforçam à grandiosidade o cenário inóspito de abrigo do cultural empreendimento da personagem de Klaus Kinski, os congêneres médios em geral enfatizam o verniz bandeirante da colonização ainda tentada, mesmo que não reconhecida aos seu agentes e ignorada a manipulação ativa da teogonia originária no mercantilismo forjado de duplas intenções. O navio singrado às colunas verdes de distintos regimes hidrográficos estiliza à morfologia e à visualidade a economia de dádivas assimétrica do imperial-colonialismo continental, não obstante o ritual completado de encantamento das almas desencarnadas à efetivação do projeto refundador da vida terrena seja valorado em lógica não compreendida ao Ocidente.
A ambiguidade contudo não declarada do desfecho de Fitzcarraldo entende a persistência anticlimática do atravessamento colonial das relações intergrupos à saudação regente de I Puritani (Vincenzo Bellini, 1834–5) e, portanto, do registro oficial sem dissonâncias das façanhas juvenis de segmentos médios empoderados à possibilidade do monopólio antes negado da burocracia estatal-militar ultramarina, mas arrisca-se à apropriação de fim satírico diverso a um libelo. Enquanto o uso de gênero semelhante ao da produção em tempo histórico de narrativas oficiais é coerente como recurso à inteligibilidade do meio, a ausência de linhas declaratórias pode contemporizar os traumas estabelecidos à violência do processo colonial e tributá-lo à apologia de tragédias afiançadas aos autoritarismos civilizacional-supremacistas.
Visto para o Clube do Crítico.