Eu Não Sou uma Bruxa: longa realiza balanço da transição pós-colonial zambiana entre continuidades e rupturas em estreia na direção de longas-metragens de Rungano Nyoni

Thainá Campos Seriz
4 min readJun 10, 2024
Pôster promocional de “Eu Não Sou uma Bruxa” (título original: “I’m Not a Witch”, 2017) (Imovision, 2018), longa com direção e roteiro de Rungano Nyoni. Foto: reprodução.

Título original: I Am Not a Witch
Países de origem: Reino Unido, França e Zâmbia (2017)
Duração: 93 minutos
Gênero: drama
Direção e roteiro: Rungano Nyoni
Produção: Mary Burke, Nicky Earnshaw, Eve Gabereau, Gabriel Gauchet, Juliette Grandmont, Karls Hall, Titus Kreyenberg, Benjamin Lanlard, Emily Morgan, Hannah Thomas e Eva Yates
Fotografia: David Gallegos
Montagem: George Cragg, Yann Dedet e Thibault Hague
Trilha sonora: Matthew James Kelly
Figurino: Holly Rebecca
Distribuição (Brasil): Imovision
Elenco: Margaret Mulubwa, Henry B. J. Phiri, Nancy Murilo, Gloria Huwiler

A indústria cinematográfica deve equânime e obrigatório acesso a produções oriundas ou definidas a partir do Sul Global (Oglesby, 1969). A acrescer a enumeração realizadora, a autoria interna de histórias não únicas (ver Adichie, 2019) contribui antes com exercício reparador autocentrado de traumas provocados ao apagamento africano da cosmogonia ocidental e, por isso, da humanidade espraiada planetária. A proposta de ímpeto talvez historiográfico inscrita por Rungano Nyoni em Eu Não Sou uma Bruxa (título original: I Am Not a Witch, 2017) (Imovision, 2019), diga-se, elabora o rearranjo sistêmico de opressões como supraestruturalizado no período do jugo imperial britânico entre a interiorização do poder à aliança das elites da terra outrora coloniais e da heterodenominada aristocracia tradicional em um balanço a posteriori do ciclo emancipatório zambiano (1964).

Na imagem, a pequena Shula (Margaret Mulubwa), ou desarraigada, como expressaria o próprio nome por que seria denominada. Foto: reprodução.

Reflexo ou não da reorganização societária do país independente à entrada no capitalismo, o entrecruzamento de formas políticas duais consolida-se produto e ente produtor das desigualdades genderizadas de classe transpostas para a grande tela em imagens insaturadas e na escolha de planos de filmagem e de quadros cuja morfologia dispõe hierarquias e injustiças de vária ordem. De semântica cosmológica, a paisagem natural constitui-se mediadora objetiva dos eventos apresentados centrais, pois também vitimizada aos arbítrios em curso. Neste sentido, As Quatro Estações vivaldianas (1723) antecipariam à trilha sonora as estações outonal e invernal partilhadas às mulheridades esquecidas daquele lugar entrementes ao ódio antropológico de mobilização sororário-colonialista focalizado a certo momento na narrativa.

Em A Fita Branca (título original: Das weiße Band) (dir.: Michael Haneke, 2009), recorde-se, o objeto-título apelaria ao retorno ao estado de pureza original das branquidades infantis para a proteção de suas pequenas divindades aquando do enfrentamento das tentações mundanas. Já no caso de I Am Not a Witch, pois sem origem ou pertença étnico-familiar distinguível, a menina Shula (Margaret Mulubwa) forjar-se-ia ameaçadora ao frágil equilíbrio comunitário e, sob o construto da bruxaria, o mesmo item serviria à institucionalização do ostracismo e do achaque públicos. Acusadas transgressoras ou insubmissas, mulheres e meninas tiveram os destinos atados ao Estado e à sociedade, porque agentes expropriadores supremacistas dos corpos e da intelectualidade femininos ou tão só replicadores das violências misógino-patriarcais.

Achacada ao fetichismo colonialista de certa aventura turística, Shula (Margaret Mulubwa) teria reproduzidas contra si diversas das violações já perpetradas à sociedade que integraria forçosamente naquele lugar. Foto: reprodução.

Metonímica, a caracterização psicológica das personagens em cena construída ao roteiro de Nyoni comenta aspectos ignorados da transição pós-colonial de África em uma quase micro-história. O retrato da síndrome pequeno-burguesa do carreirista Banda (Margaret Mulubwa) simboliza a atuação neocolonizadora de uma lealdade volátil às forças políticas consuetudinárias e ao imperativo liberalizador. Elementos de primazia social, o uso hegemônico da língua inglesa na comunicação com compatriotas e a indumentária serviriam ao descrédito do afastamento orquestrado às comunalidades em escapismo neurótico (Freud, 1888) da condição originária tomada degradante.

Em vaga diversa, Charity (Nancy Murilo) consideraria o casamento e a consequente submissão marital saídas possíveis — ou as únicas disponíveis — ao insulamento de gênero, desprezando o caráter entretanto continuista da ruptura produzida no passado. Marca não obliterada à vontade, a fita agrilhoaria voos altaneiros e emancipação a quem reivindicasse presente distinto e a chance mesma do futuro. Negada a possibilidade do convívio com iguais e da infância, Shula entregar-se-ia ao extermínio em resistência contundente, embora trágica.

Se a morte ritualiza a passagem à nova vida, o vermelho refaz-se celebrativo, ainda que perspectiva material contradominação não exista. Ante o sacrifício da juventude e do compromisso ético com as gerações vindouras, o pujante desfecho recorda a urgência de aquebrantar a si e ao coletivo quaisquer guizos. Com atos inicial e derradeiro dos mais arrebatadores do cinema contemporâneo, a estreia na realização de longas-metragens da diretora zambiano-galesa afiança-se uma das melhores ocorridas na última década.

Banda (Margaret Mulubwa) (na imagem à esquerda de terno) simbolizaria o agente que, medíocre, volatizaria a interesse próprio a lealdade entre certa aristocracia consuetudinária tradicional e a transição objetiva ao capitalismo pós-colonial. A um e a outro agentes, ao Estado e à sociedade, meninas e mulheres declaradas insubmissas seriam ostracizadas em suas vidas públicas. Fotos: reprodução.

Visto no Clube do Crítico 26.

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Thainá Campos Seriz

Historiadora (UFF). Pesquisa e revisão de conteúdo no Canal Preto. Podcaster no ObSessões de Cinema.