Emilia Pérez: ópera alegadamente absurdista de Jacques Audiard replica estereótipos e colonialismos que disse rejeitar à representação das latinidades mexicanas e das transgeneridades
Título: Emilia Pérez
Países de origem: França e México (2024)
Duração: 132 minutos
Gênero: musical; thriller
Direção e roteiro: Jacques Audiard
Obra original: Jacques Audiard
História: Boris Razon (2018)
Produção: Jacques Audiard, Pascal Caucheteux, Valérie Schermann e Anthony Vaccarello
Fotografia: Paul Guilhaume
Montagem: Juliette Welfling
Música: Camille e Clément Ducol
Direção de arte: Emmanuelle Duplay
Figurino: Virginie Montel
Distribuição (Brasil): Paris Filmes
Elenco: Karla Sofía Gascón, Zoë Saldaña, Selena Gomez, Adriana Paz, Édgar Ramírez
A confluência de distintos gêneros poderia ser interessante exercício estilístico em Emilia Pérez (2024) (Paris Filmes, 2025), caso o roteiro do longa dirigido por Jacques Audiard não falhasse na abordagem de todos os temas suscitados em tela — a saber, feminicídio, transgeneridade, afetividade sáfica, narcotráfico, corrupção político-institucional e desaparecimentos — . A reconhecer-se ou não controverso o exame de dramas societários pela proposta observada, as canções do musical só estão bem-inseridas à narrativa, porque suprem a ausência de tratamento temático-argumentativo complexificador, a despeito das rimas de inspiração questionável. Tamanha profusão conteudística faz da absurda sequência de eventos desvelada ode à criatividade superficial do uso de iluminação e de fotografia cujo retrato urbano estereotipifica visão além-trágica do país latino-americano decaído à própria vileza.
Quanto a Manitas Del Monte/Emilia Pérez (Karla Sofía Gascón), a seleção vocabular adotada já nos tópicos frasais antecipa em si reflexões todavia não exteriores ao filme. Se a retórica confessional daquele narcotraficante sobre a sua disforia empatiza o público à protagonista, como operada e mesmo verbalizada, a assunção da nova identidade mais parece vincular-se ao triunfo na disputa por poder do que ao sincero desejo por exprimir-se de forma autodefinida. Neste sentido instrumentalizável, a legítima ruptura com o passado doloroso constrói à personagem arco redentor, pois afugenta a responsabilização jurídica por conduta pregressa, e justifica à sobrevivência a performance social violenta das masculinidades mexicanas. Observadas as idiossincrasias de cada trajetória e observado o respeito a escolhas plurais, o comentário do médico Wasserman (Mark Ivanir) permanece válido: a afirmação de gênero não deveria ter leitura somente atribuível a processo medicalizador/genitalizador dos corpos, embora recurso contextual seja/possa ser à segurança e à integridade físicas de pessoas transgênero.
Decerto não objetivadas, por outro lado, as intermitentes referências ao gênero morto (meio ele, meio ela) não correspondem à subjetividade (no direito à raiva) ou mencionam a socialização masculinista enquanto construto, mas quase funcionam para desestabilizar a mulheridade de Pérez, em especial, quando reage agressivamente à decisão de Jessi (Selena Gomez) e é imolada em consequência ao descontrole — estabelecido à diegese, o destino de homens mexicanos é único e não se distingue —. Causa algum espanto o desprezo à representação de tipos humanos entre os aspectos formais de uma obra fílmica e às possíveis apropriações de estereótipos replicados por grupos antitrans ou supremacistas. Passada a tempestade dos últimos acontecimentos, espero sabermos retornar a espaço comum de diálogo.