Emilia Pérez: ópera alegadamente absurdista de Jacques Audiard replica estereótipos e colonialismos que disse rejeitar à representação das latinidades mexicanas e das transgeneridades

Thainá Campos Seriz
3 min readFeb 6, 2025

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Pôster promocional de “Emilia Pérez” (2024) (Paris Filmes, 2025), longa dirigido e roteirizado por Jacques Audiard em adaptação a libreto operístico homônimo e de mesma autoria inspirado no romance “Écoute”, do escritor francês Boris Razon (2018). Foto: reprodução.

Título: Emilia Pérez
Países de origem: França e México (2024)
Duração: 132 minutos
Gênero: musical; thriller
Direção e roteiro: Jacques Audiard
Obra original: Jacques Audiard
História: Boris Razon (2018)
Produção: Jacques Audiard, Pascal Caucheteux, Valérie Schermann e Anthony Vaccarello
Fotografia: Paul Guilhaume
Montagem: Juliette Welfling
Música: Camille e Clément Ducol
Direção de arte: Emmanuelle Duplay
Figurino: Virginie Montel
Distribuição (Brasil): Paris Filmes
Elenco: Karla Sofía Gascón, Zoë Saldaña, Selena Gomez, Adriana Paz, Édgar Ramírez

A confluência de distintos gêneros poderia ser interessante exercício estilístico em Emilia Pérez (2024) (Paris Filmes, 2025), caso o roteiro do longa dirigido por Jacques Audiard não falhasse na abordagem de todos os temas suscitados em tela — a saber, feminicídio, transgeneridade, afetividade sáfica, narcotráfico, corrupção político-institucional e desaparecimentos — . A reconhecer-se ou não controverso o exame de dramas societários pela proposta observada, as canções do musical só estão bem-inseridas à narrativa, porque suprem a ausência de tratamento temático-argumentativo complexificador, a despeito das rimas de inspiração questionável. Tamanha profusão conteudística faz da absurda sequência de eventos desvelada ode à criatividade superficial do uso de iluminação e de fotografia cujo retrato urbano estereotipifica visão além-trágica do país latino-americano decaído à própria vileza.

Na história imaginada por Jacques Audiard, um narcotraficante (Karla Sofía Gascón) decide concluir sua transição de gênero ao contratar (ou sequestrar?) a advogada Rita Mora Castro (Zoë Saldaña) para ajudá-lo com o processo de agendamento de cirurgias redesignadoras além-fronteiras mexicanas. Segundo Manitas Del Monte (Sofía Gascón), viver quem sempre se foi será possibilidade única de ingresso a uma nova vida, ainda que jamais considere a responsabilização jurídica de condutas criminais pregressas espaço de legítimo refazimento. Fotos: reprodução.

Quanto a Manitas Del Monte/Emilia Pérez (Karla Sofía Gascón), a seleção vocabular adotada já nos tópicos frasais antecipa em si reflexões todavia não exteriores ao filme. Se a retórica confessional daquele narcotraficante sobre a sua disforia empatiza o público à protagonista, como operada e mesmo verbalizada, a assunção da nova identidade mais parece vincular-se ao triunfo na disputa por poder do que ao sincero desejo por exprimir-se de forma autodefinida. Neste sentido instrumentalizável, a legítima ruptura com o passado doloroso constrói à personagem arco redentor, pois afugenta a responsabilização jurídica por conduta pregressa, e justifica à sobrevivência a performance social violenta das masculinidades mexicanas. Observadas as idiossincrasias de cada trajetória e observado o respeito a escolhas plurais, o comentário do médico Wasserman (Mark Ivanir) permanece válido: a afirmação de gênero não deveria ter leitura somente atribuível a processo medicalizador/genitalizador dos corpos, embora recurso contextual seja/possa ser à segurança e à integridade físicas de pessoas transgênero.

Decerto não objetivadas, por outro lado, as intermitentes referências ao gênero morto (meio ele, meio ela) não correspondem à subjetividade (no direito à raiva) ou mencionam a socialização masculinista enquanto construto, mas quase funcionam para desestabilizar a mulheridade de Pérez, em especial, quando reage agressivamente à decisão de Jessi (Selena Gomez) e é imolada em consequência ao descontrole — estabelecido à diegese, o destino de homens mexicanos é único e não se distingue —. Causa algum espanto o desprezo à representação de tipos humanos entre os aspectos formais de uma obra fílmica e às possíveis apropriações de estereótipos replicados por grupos antitrans ou supremacistas. Passada a tempestade dos últimos acontecimentos, espero sabermos retornar a espaço comum de diálogo.

Depois de operada a transição, Emilia Pérez (Gascón) envolve-se no ativismo de direitos humanos em prol dos desaparecidos mexicanos não por ímpeto reparador ao próprio país, mas por “sentir-se mais amada por si mesma”, já que redimida às lágrimas de uma mãe grata pela localização do corpo do próprio filho em crise cuja corresponsabilidade parece ter sido oportunisticamente esquecida. Foto: reprodução.

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Thainá Campos Seriz
Thainá Campos Seriz

Written by Thainá Campos Seriz

Historiadora (UFF). Pesquisa e revisão de conteúdo no Canal Preto. Escrevo sobre cinema.

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