Dor e Glória: autoficção é instrumento para a história pública de si em retorno à arte, ou ao fazer cinema, de Pedro Almodóvar

Thainá Campos Seriz
3 min readSep 18, 2024

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Pôster promocional de “Dor e Glória” (título original: “Dolor y Gloria”) (Universal Pictures, 2019), longa dirigido e roteirizado por Pedro Almodóvar. Foto: reprodução.

Título original: Dolor y Gloria
País de origem: Espanha (2019)
Duração: 113 minutos
Gênero: drama
Direção e roteiro: Pedro Almodóvar
Produção: Agustín Almodóvar
Fotografia: José Luis Alcaine
Montagem: Teresa Font
Direção de arte: María Clara Notari
Trilha sonora: Alberto Iglesias
Som: Marc Orts
Figurino: Paola Torres
Distribuição (Brasil): Universal Pictures
Elenco: Antonio Banderas, Asier Flores, Penélope Cruz, Julieta Serrano, Asier Etxeandia, Leonardo Sbaraglia, Nora Navas

O envelhecimento parece acelerar a queda do peso das ruínas do passado sobre as costas e, em arte, ou porque arte, as somáticas dores do presente efetivam-se instrumento de ficcionalização da glória vivida como longevidade alcançada. Se apoteose ou ocaso, tome-se corajosa a vulnerabilidade da autoficção no conhecimento público de memorabilia forjada particular. De verve autobiográfica, em Dor e Glória (título original: Dolor y Gloria) (Universal Pictures, 2019), Pedro Almodóvar faz do retorno à infância matéria de escrutínio e de escrita da própria história no confronto com o luto, com a adicção e com os fantasmas da fuga outrora encampada da vida sob a égide materna (Penélope Cruz e Julieta Serrano) e das veladas sanções percebidas a uma ainda não formada individualidade.

Cineasta, Salvador Mallo (Antonio Banderas) vive um hiato criativo enquanto tenta debelar as dores que, no corpo e na alma, incapacitam-no à fruição artística. Foto: reprodução.

Estratégia narrativa, os flashbacks e as contiguidades visuais estabelecem-se os motivos da proposta que, em tela, interpola temporalidades na construção da imagem em seus nexos morfológico e semântico. Filiadamente wong kar-waiano (2000), o esquema de cores satura estados físico-emocionais e vincula-se, senão condicionante, estressor psicológico da claustrofobia sentimental imposta à alteridade. No uso sempre complementar de tons primários e secundários, a saber, o vermelho, o amarelo, o azul, o verde e o laranja, a ambivalência produzida dos reencontros (com os amores infantojuvenis) e da revisita às memórias justapõe-se à decupagem na tradução dos dramas interiores. À pele de Salvador Mallo (Antonio Banderas), por fim, o cineasta espanhol permite-se submergir na recriação assumida inconstante da trajetória nunca desvelada de si para o alcance do silêncio entre o fazer cinema enquanto resposta à curiosidade inconteste do menino frente à urina, pois toxina desfeita, do mundo.

O desfecho à retomada da realização cinematográfica e ao enamoramento pioneiro é alegoria evidente do talvez principal recurso inspirador da permanência no ofício: a volta intermitente às paixões — ou às ausências geradas nesta vaga — . A tomar a filmografia do autor, o mesmo movimento fê-lo regressar à imaginação do (pretérito) western Estranha Forma de Vida (título original: Extraña Forma de Vida, 2023), lançamento vindouro já concretizado. Facilitadora ou não da fruição de Almodóvar vedada ao teatro da sobrevivência e do cotidiano, seja a fantasia desejo compartilhado do triunfo do viver à decadência dos dias.

É a permissão, enfim, autoconcedida da passagem ao luto e do retorno à infância (Asier Flores), à memória materna (Penélope Cruz, na foto, e Julieta Serrano) e ao grande, porém, irrealizado amor (Leonardo Sbaraglia) que revivesce Mallo (Banderas) na continuidade da vida pós-traumas e dor. Fotos: reprodução.

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Thainá Campos Seriz
Thainá Campos Seriz

Written by Thainá Campos Seriz

Historiadora (UFF). Pesquisa e revisão de conteúdo no Canal Preto. Escrevo sobre cinema.

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