Cabra Marcado para Morrer: memória e reparação são temas de registro do real no documentalismo à redemocratização (1985) de Eduardo Coutinho
Título original: Cabra Marcado para Morrer
País de origem: Brasil (1984)
Duração: 119 minutos
Gênero: documentário
Direção e roteiro: Eduardo Coutinho
Produção: Zelito Viana, Vladimir Carvalho e Eduardo Coutinho
Produção executiva: Leo Hirszman e Zelito Viana
Direção de fotografia: Fernando Duarte e Edgar Moura
Montagem: Eduardo Escorel
Trilha sonora: Rogério Rossini
Distribuição: Mapa Filmes
Elenco: Eduardo Coutinho, Ferreira Gullar, Tite de Lemos, Elizabeth Teixeira
Entre ficção, documentário e metalinguagem, Cabra Marcado para Morrer (Mapa Filmes, 1984) segue melancólico manifesto atual. A princípio, o longa-metragem ficcional fora idealizado com vistas à elucidação reencenada da trajetória de João Pedro Teixeira (1918–1962), líder da Liga Camponesa de Sapé, Paraíba (PB), até a ordem de seu assassinato pelo coronelato grande proprietário de terras local, em 1962. Na esteira do avanço de uma progressiva rearticulação sancionada de movimentos e de organizações sociais populares com vínculo ou não partidário à esquerda política nacional e sob estrutura ou não sindical, a luta de Teixeira situava a resistência campesina pró-reforma agrária frente ao aprofundamento das hierarquias sociorracial-econômicas e de classe do Brasil rural ante o que a histórica concentração latifundiária regional faria recrudescer a anomia de violações a direitos humanos e trabalhistas, a partir das convenientes alianças municipais e estaduais com os militares poderes.
Neste sentido, Eduardo Coutinho e equipe retornaram ao Nordeste para o início das gravações do longa-metragem homônimo em 1964, quando o golpe civil-militar (31/3 e 1º/4) interromperia definitivamente a produção, dadas a prisão de vários de alguns dos atores (não profissionais) participantes, afora o autoexílio de outros, e a apreensão do material já compilado. Passados 17 anos e à abertura a consolidar do regime ditatorial pós-1979 (Lei de Anistia), o acesso liberado ao conjunto sequestrado reacendeu o desejo em torno da possibilidade do reencontro com as personagens de outrora. Na nova viagem, a recepção inesperada do grupo por Elizabeth Alinto Teixeira (1925), viúva de João Pedro, proporcionaria não apenas a oportunidade do diálogo sobre aqueles dias, como chance única à reconstituição da memória de J. P. Teixeira e do protagonismo de E. Teixeira na proteção ao legado do ex-companheiro e às histórias individual-coletivas de liderança feminina pioneira nas associações de trabalhadores e de trabalhadoras do campo, de perdas e de separações — em ambas as fugas capitaneadas (Pernambuco e Rio Grande do Norte), a Elizabeth não restou escolha, senão abandonar oito dos onze filhos do casal — .
A transição temporal é também o deslocamento de estilos e/ou de referências: o drama de fundo policial neorrealista/do cinema novo brasileiro pré-1964 dá lugar à vaga do registro do real por excelência, no qual a prioridade de planos médios longos visa à captação livre e sem cortes abruptos de depoimentos e de quaisquer influências ambientais intercorrentes. O foco no resgate e na elaboração traumática dos eventos de 1962–64 constitui antes esforço de refazimento memorialístico e da dignidade das vidas ceifadas ao terror estatal autoritário dos anos 1964–85. Se 1981–84 ofereceram espaço a trabalho poético-político-narrativo contraoficial à redemocratização, 2024 ainda vê 1985 ao retrovisor, considerando-se a ausência de uma justiça de transição e o tácito perdão público aos crimes de agentes civil-militares no período.
À solução reparatória, diga-se, já engendrada a Cabra Marcado para Morrer e a expressões ali contemporâneas, falta a coragem de João Pedro e de Elizabeth Teixeira ao enfrentamento de nossos algozes. Basta de adiar o futuro!
Visto para o Clube do Filme.