Barbie: autoconsciência é maturidade (e diversão)

Thainá Campos Seriz
5 min readJul 24, 2023

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Pôster oficial de “Barbie” (Warner Bros., 2023). Foto: reprodução.

Direção: Greta Gerwig
Roteiro: Greta Gerwig e Noam Baumbach
Fotografia: Rodrigo Prieto
Montagem: Nick Houy
Trilha sonora: Alexandre Desplat e Mark Ronson
Produção: Margot Robbie, Tom Ackerley, Robbie Brenner, David Heyman
Elenco: Margot Robbie, Ryan Gosling, Will Ferrell, Simu Liu, America Ferrera, Ariana Greenblatt, Ncuti Gatwa, Emma Mackey, Alexandra Shipp, Michael Cera, Issa Era, Kingsley Ben-Adir, Rhea Perlman, Kate McKinnon

Nem uma crítica — ou comentário, para este meu caso — é imparcial, mas cometerei um texto mais imparcial ainda: enquanto alguém que teve o feminino massacrado em tenra infância, reencontrar o rosa para vesti-lo com o desejo de leveza e celebrar a chegada de Barbie (Warner Bros., 2023) aos cinemas ressoaria contraditório, porque, também na infância, massacrada fui pela boneca. Explico: inacessível financeiramente, seu ideal inspirador, no entanto, reverberava não empoderamento, como talvez quisessem certos acionistas, mas conformidade ao status quo. Aliás, a criação da boneca, encarada com coragem entre o grandioso roteiro de Greta Gerwig e Noah Baumbach — subversivo dentro das possibilidades inferidas por uma produção realizada sob demanda — , envolvia a projeção de uma identidade adulta não reduzida à maternidade para meninas contudo limitada às empreitadas profissionais do companheiro Ken — em oposição ao visto em tela e em ruptura com a história da boneca — . As diversas profissões da boneca eram, antes, paralelo e derivação das aventuras do parceiro, e não fruto de sua agência. Com isso, certamente, contrariarei executivos, admiradores e defensores(as) da boneca, mas história, se não repetida, vira farsa.

A projeção de Ruth Handler (1916–2002), cofundadora da Mattel e uma das idealizadoras de Barbie, ou Barbara, em nada rompia com a misoginia social dos anos 1950–60, fazendo quase inatingível a menina-mulher cujas brancura, extrema magreza e dependência afetivo-emocional entre um relacionamento romântico heteroafetivo dessexualizado seriam signos identificadores da feminilidade do pós-guerra. Afinal, estranho seria, se a boneca surgida do pretenso “rompimento” com a tal compulsão maternal feminina gerasse filhos (sexo era procriador, recorde-se, e a 1ª Barbie, apesar da origem em uma prostituta alemã, fora lançada em trajes matrimoniais. As filhas ainda precisavam casar). A Barbie empoderada surfaria entre as conquistas ideopolíticas da onda feminista de fins dos anos 1960 e do início da década seguinte e até, veja só, seria negra ou não branca, eventualmente, com alguma deficiência. Mercadoria que é, contudo, Barbie (re)constituía-se fetiche à sanha da lucratividade capitalista de homens (e de uma Handler sonegadora de impostos).

O patriarcado tão repisado por Gerwig e Baumbach é desvelado em suas mais distintas ocorrências durante o filme, seja pelo masculinismo apreendido do mundo real ou enquanto produto do afastamento de mãe e filha via sequestro do tempo e disponibilidade emocional/relacional pela exploração capitalista. Digo mundo real, já que Barbieland encerra os ganhos ilusórios do feminismo branco-liberal para a famigerada universalidade de experiências do ser e existir mulher desinformada de pluralidade racial, de gênero, sexualidade, capacidade, território, idade etc. Distante da cruel realidade por que o patriarcado racista subjuga mulheres e homens ridículos aferrados a um poder fálico vazio até de sentido, como o encarnado pelo brilhante (com e sem trocadilhos, escolha uma interpretação) Ryan Gosling, a Barbie estereotipada de Margot Robbie precisaria decidir se resgatava a existência de artificialidades e de tédio da confusão de sentimentos sobre seu papel social e sobre o próprio viver, ou, ao contrário, entregava-se à descoberta de quem se é — jornada igualmente afeita e disponível aos Kens (ou aos homens?) — .

Frame do filme “Barbie”. Foto: reprodução.

Sim, Gerwig desvelou-nos ambos os mundos por uma sensível, porém assertiva e emocionada America Ferrera (Gloria) em monólogo catártico, mas, não se esqueça, trata-se de ficção. A sequência de trabalhos da diretora (alçada do mumblecore às grandes produções) não faria crer em algo distinto ao interpretado entre os feminismos branco e liberal acerca das sociedades e, ademais, não deveríamos esperar autocríticas disruptivas ou redenções gratuitas (você pagou pelo ingresso, não foi?) de uma empresa estadunidense sobre nossas autoestimas destruídas. Em verdade, não creditaríamos nossos orgulho, consciência e maturidade unicamente ao sofrimento de gerações patrocinado pelos machos e fêmeas brancos capitalistas da Mattel. O refazimento intergeracional dos laços de mãe e filha, de meninas e mulheres sem a mediação de um ídolo inócuo (boneca = ídolo) como descortinado na grande tela deveria chamar a atenção; a busca pela cura de subjetividades e de emoções silenciadas, de abusos, da dependência e da codependência de meninos e homens, em especial, os não brancos, idem.

Sim, chorei em Barbie. Sem fazê-lo há algum tempo, respirei aliviada, apesar de pesarosa, com o desabafo de Gloria (America Ferrera), mulher não branca como eu, sobre nós. Não à toa, a crítica tão propalada ao que representa a branquidade de Barbie emergiu desta mulher. Estamos cansadas. Maturidade, consciência e orgulho também partem do meu, do nosso investimento no compromisso político com a cura de seres, de quereres e de sonhares destruídos pelo patriarcado racista e em apreciar a arte de um belíssimo, bem-construído e estonteante design de produção em paz, de preferência, vestindo o rosa antes algoz na infância.

Voltei ao cinema para rir, chorar e rir de novo em cor de rosa. Visto rosa para afirmar que o poder dos executivos homens e da boneca inventada como (hiper)foco de distorção da autoimagem projetada sobre mim acabou. Aderi ao Barbiecore para negá-lo. Resultado, sim, de uma bem-sucedida estratégia de marketing, a assustadora superadesão ao rosa nesta corrida aos cinemas diz do desejo por leveza. Seja Barbie, então, uma experiência leve.

Imagem promocional do filme “Barbie”. Foto: reprodução.

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Thainá Campos Seriz
Thainá Campos Seriz

Written by Thainá Campos Seriz

Historiadora (UFF). Pesquisa e revisão de conteúdo no Canal Preto. Escrevo sobre cinema.

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