Atiraram no Pianista: quando passado e presente unem-se para cobrar do futuro respostas sobre si mesmos

Thainá Campos Seriz
4 min readOct 6, 2023

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Pôster oficial de “Atiraram no Pianista” (título em inglês: “They Shot the Piano Player”), uma produção de Fernando Trueba e de Javier Mariscal, os mesmos criadores de “Chico e Rita”. Foto: reprodução.

Título original: Dispararon al Pianista (They Shot the Piano Player)
Países de origem: Espanha, França e Holanda
Duração: 103 minutos
Gênero: animação; drama; música
Direção: Fernando Trueba e Javier Mariscal
Roteiro: Fernando Trueba
Produção: Cristina Huete, Serge Lalou, Sophie Cabon, Arnauld Boulard, Bruno Felix, Janneke Van Der Kerkhof, Femke Wolting e Humberto Santana
Coprodução: Valérie Schermann
Produção executiva: Nano Arrieta e Fabien Westerhoff
Edição: Arnau Quiles
Animação: Carlos León Sancha
Empresas produtoras: Fernando Trueba Producciones Cinematograficas S.A, Submarine Animanostra e Les Films D’ici
Empresas coprodutoras: Arte France Cinéma e Prima Linea Productions
Realização: Fernando Trueba Producciones Cinematográficas S.A, Constellation Productions e Gao Shan Pictures
Distribuição (Brasil): Sony Pictures
Elenco (vozes originais): Jeff Goldblum, Roberta Wallach, Tony Ramos, Caetano Veloso, Alejandra Flechner, Gilberto Gil, Abel Ayala, Vinicius de Moraes, João Gilberto, Stephen Hughes, Paulo Moura, Ângela Rabelo

Surpreendente é como defino a experiência de assistir a Atiraram no Pianista (título original: Dispararon al Pianista) (Sony Pictures, 2023), longa documental de animação dirigido pela dupla Fernando Trueba e Javier Mariscal e roteirizado por Fernando Trueba que abre o Festival de Cinema do Rio de Janeiro de 2023 e aborda, pela história fictícia de publicação do livro de mesmo nome, o desaparecimento pouco conhecido do pianista brasileiro Tenório Júnior (1941–1976), músico do grupo do cantor e compositor Vinicius de Moraes (1913–1980), após show da turnê do poeta em Buenos Aires, no ano de 1976. Jeff Goldblum empresta a voz ao jornalista musical nova-iorquino cuja audição do registro em LP das canções instrumentais de T. Júnior instila o desejo irrefreável de busca pela memória e pelo legado esquecido de uma das figuras de maior referência da bossa nova do país e no exterior. Mesclando depoimentos de colegas de trabalho, de expoentes da MPB, de familiares e de amores, investigação jornalística, pesquisa histórica e ficção, Jeff refaz o contexto do crime o qual ceifou a vida deste grande artista e a tragédia mesma das ditaduras militares brasileira e argentina em meio à Operação Condor (de desestabilizações pró-ruptura de governos legitimamente eleitos na América Latina) e à perseguição à dissidência política à esquerda via terrorismo de Estado.

À esquerda, em cenário carioca, figura a animação do jornalista musical nova-iorquino interpretado por Jeff Goldblum. À direita, a representação da última noite em que Tenório Júnior (1941–1976), sentado ao piano, toca com o grupo de Vinicius de Moraes (1931–1980). Fotos: divulgação.

Na companhia do amigo João (voz de Tony Ramos), entre a belíssima, bem-colorida recriação do Rio de Janeiro (Brasil) e a partir de apuração própria, o jornalista concluiu sobre o assassinato de Tenório Júnior em Buenos Aires, capital. O pianista fora sequestrado ao deixar o hotel onde estava hospedado para ir a uma farmácia. Aproximadamente após um ano do início das pesquisas e da busca de Jeff, o ex-cabo e integrante do Serviço de Informação Naval Claudio Vallejos (voz de Abel Ayala) revela-lhe em entrevista ter sido testemunha da chegada do brasileiro à sede da Escola de Mecânica da Armada (ESMA), principal centro de tortura da ditadura argentina, e de seu posterior homicídio pelo ex-capitão de fragata da Marinha argentina Alfred Astiz e por autoridades brasileiras, entre elas, o major do Exército Souza Baptista Vieira — originalmente, a entrevista fora publicada na Revista Senhor (1986) e gerou o depoimento utilizado pelo cineasta Rogério Lima no documentário Tenório Jr.? (Videocom), também lançado em 1986, acerca da tragédia. Logo depois da entrevista, Vallejos foi preso por determinação do Ministro da Justiça Paulo Brossard e, depois de três meses, expulso do Brasil — . Longe do debate político e mesmo da esquerda, conforme relataram pessoas próximas, a escolha final seria a da execução do pianista, seja por conta do antiesforço de quebra das relações diplomáticas Argentina-Brasil ou do temor de denúncias aos desmandos do regime em âmbito internacional.

A recusa deste país em responsabilizar os algozes do terror ditatorial — antes ainda, citem-se as escravizações indígena e negro-africana — e, consequentemente, em avançar a respeito da justiça de transição e de medidas reparatórias só poderia oferecer como resultado o ostracismo coletivo de nossas intelectualidades e de nossos feitos. Da memória e do conhecimento da história do horror nasceria o Brasil de que Tenório Júnior foi epítome (em beleza, em música e em poesia). O conhecimento da história pública e a memória coletiva impediriam a replicação das iniquidades senhorial-coloniais de aniquilação da nossa gente. Atiraram no Pianista esforça-se pela memória (em imagem) de nossos horrores e belezas e, por isso, deve ser celebrado.

O filme chega em 26/10 aos cinemas brasileiros.

Ainda no Beco das Garrafas, todos paravam para ouvir o piano de Tenório Júnior. Foto: divulgação.

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Thainá Campos Seriz
Thainá Campos Seriz

Written by Thainá Campos Seriz

Historiadora (UFF). Pesquisa e revisão de conteúdo no Canal Preto. Escrevo sobre cinema.

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