Assassinos da Lua das Flores: o cinema em seu papel histórico de reparação à chancela moral de genocídios
Título original: Killers of the Flower Moon
País de origem: Estados Unidos
Duração: 206 minutos
Gênero: história; drama; ficção histórica; suspense; western revisionista
Direção: Martin Scorsese
Roteiro: Eric Roth e Martin Scorsese
Obra original: David Grann (2017)
Produção executiva: Adam Somner, Leonardo DiCaprio, John Atwood, Lisa Frechette, Niels Juul, Shea Kammer e Rick Yorn
Produção: Martin Scorsese, Daniel Lupi, Dan Friedkin e Bradley Thomas
Direção de fotografia: Rodrigo Prieto
Direção de arte: Jordan Crockett, Spencer Davison e Michael Diner
Montagem: Thelma Schoonmaker
Figurino: Jacqueline West
Trilha sonora: Robbie Robertson
Empresas produtoras: Appian Way e Sikelia Productions
Distribuição (Brasil): Paramount Pictures
Elenco: Leonardo DiCaprio, Roberto De Niro, Lily Gladstone, Jesse Plemons, Cara Jade Myers, Janae Collins, Jillian Dion, Brendan Fraser
Outras duas dramatizações (1935 e 1959) do genocídio Osage foram realizadas antes da presente adaptação, por Martin Scorsese, do livro-reportagem Assassinos da Lua das Flores. Petróleo, morte e a origem do FBI (título original: Killers of the Flower Moon: The Osage murders and the birth of the FBI), de autoria do jornalista nova iorquino David Grann (2017) acerca do mesmo tema, e apenas em 2023, no entanto, a nação indígena não foi vilanizada. As produções anteriores, westerns por excelência, consagrariam o Reino do Terror (Osage Reign of Terror) dos Filhos das Águas Centrais enquanto dano colateral à conquista civilizatória de um Oeste desbravado por tão heroica iniciativa da branquidade estadunidense. Já em período contemporâneo, em outro momento histórico, o roteiro da parceria Eric Roth e Martin Scorsese para o longa que recém-chegou às salas de cinema de todo o mundo faz, enfim, justiça ao apagamento de outra das tragédias do colonialismo em continente americano.
Originários aos territórios do Missouri, do Arkansas e do Kansas, homens, mulheres e crianças Osage foram destituídos de solo primordial ainda no século 18, ou seja, entre as Guerras de Independência das outrora intituladas Treze Colônias Inglesas, e nos Oitocentos, porque forçados a um acordo com o então governo federal constituído ante seu assassínio desenfreado, terminaram por deslocar-se até Oklahoma (Meio Oeste dos EUA), onde se estabeleceram. A descoberta de petróleo em área tão inóspita — concedida, aliás, pela sabida improdutividade — , contudo, iniciaria a corrida de ganância e de horror que, nos anos 1918–1931, levaria ao massacre de centenas de membros da nação indígena em Fairfax, cidade do condado Osage, em virtude da herança dos direitos de exploração do mineral.
O ambiente da boa convivência entre um e outro grupos (indígena e não indígena) na região, não obstante reconhecido como preteritamente traumático, é recriado no 1º ato já em contraste com a onda inicial de assassinatos cometida sob algum mistério e sem mais investigações. Por isso, o abuso de planos zenitais na abertura engendra a visão da riqueza Osage e a observação onisciente da sequência de eventos feita conhecer pela narração em voice over das vidas martirizadas por Lily Gladstone. Se a escalada da violência de tipo racial está refletida na crueldade dos meios por que as execuções são gradativamente perpetradas, escabroso, mas não surpreendente, é também o nível da inimputável conspiração idealizada e levada a cabo por brancos e por brancas locais, com a anuência das esferas judiciárias e de poder distritais e estadual frente ao holocausto desencadeado.
A síntese oferecida pelo William K. Hale (1874–1962) do magistral Robert De Niro a respeito do sempre conturbado relacionamento de brancos e de não brancos é o manifesto anti-western de Scorsese: degenerada e imoral é a branquidade, porque incivilizada. A inveja é, aqui, um produto da paranoia racial-supremacista branca e a arma da ardilosidade plutocrata do saque e do sequestro históricos ao grupo. Já a escolha de retrato do romance de Ernest Burkhart (Leonardo DiCaprio) (nascido Ernest George Burkhart, 1893–1986) e de Mollie Kyle (Lily Gladstone) (1886–1937) procura condensar o conflito de lealdades, o grau de abuso contido na perda de identidade entre uma eventual assimilação provocada às humanidades indígenas e a integridade dos modos de ser e de viver no mundo originários, apesar ou não dos assédios às aniquilações física e simbólica. Mesmo com algum tempo de tela reduzido a Lily Gladstone, em razão do compreensível foco à sanha assassina das brancas masculinidades — tema comum, diga-se, à filmografia de M. Scorsese — , a força de sua atuação reflete-se na vulnerabilidade permitida a quem, solitária e forçosamente, aglutinou em si a tragédia do próprio povo — quando não assassinadas a sangue frio, a mãe e as irmãs de Kyle morreram envenenadas — e na serenidade incisiva de um olhar raríssimas vezes visto tão intenso.
A rendição do Ernest Burkhart de Leonardo DiCaprio à vibrante presença de Mollie K. seria justificável, não fosse a dúvida a pairar sobre o real envolvimento romântico das partes. A complexidade do papel coloca-o ora como alvo da dependência emocional do tio W. King Hale (Robert De Niro) e, por este motivo, braço colaborador do plano de extermínio do grupo Osage, ora qual agente de seu destino pelo amor a Mollie. O encerramento da personagem aos cantos inferiores de cada quadro, dados os ângulos de captação do cinematógrafo, e os jogos de luzes entre planos e contraplanos são ilustrativos das hierarquias de poder de mentores e de executores, e o rápido foco zenital às bandeiras estadunidense e confederada no desenvolvimento do 2º ato remete à força que, onisciente e visível, atribui sentido às ações dos assassinos, e não heróis fundadores, da história do país.
Enquanto a abertura e a penúltima cena vinculam-se em estética ao estilo narrativo do cinema mudo, o drama de tribunal do 3º ato atualiza uma breve sensação de justiça construidamente melancólica pela conhecida responsabilização limitada dos envolvidos. Se Hale tinha direito ao alívio da pena de prisão perpétua por bom comportamento, Burkhart, por outro lado, saíra da reclusão em liberdade condicional por nem uma só explicação. Ambos retornariam ao condado Osage sem impedimentos e ao direito de uma vida e de uma morte tranquilas às velhices roubadas de suas vítimas. Já Mollie, que quase enfrentou semelhante destino, casara-se com John Cobb (nascido John William Cobb, 1905–1969), após o divórcio do tornado ex-marido (1928), mas morrera pouco depois, em 1937, ainda aos 50 anos, em decorrência de complicações da diabetes. O obituário atestara o sepultamento ao lado do pai James ‘Jimmy’ Ne-Kah-Es-Sey (1833–1913), da mãe Lizzie Q. Kyle (nascida Lizzie Ne Kah Es Sey, 1848–1921), das irmãs Minnie Smith (1889–1918), Anna Kyle Brown (1886–1921) e Rita K. Smith (nascida Reta Kyle Smith, 1891–1923) e da filha caçula Anna (nascida Anna Luella Burkhart, 1922–1926), sem quaisquer menções aos assassinatos de Anna B. e de Rita S. ou às mortes por envenenamento de Lizzie Q. e de Minnie S.
O genocídio, consolidador da autoridade do há pouco fundado Bureau Federal de Investigação (FBI) e cuja relação com o massacre racial de Tulsa (Greenwood/Oklahoma, 1921) fora acertadamente estabelecida pelo roteiro, apagado permaneceu dos livros oficiais, a qual não cobrou a intranquilidade de violadores.
O cinema antes responsável pelas chancelas moral e intelectual da hecatombes indígena e negra estadunidenses cumpre papel incontornável à reparação via registro em imagem do horror. A belíssima cena de desfecho do longa, do superângulo subjetivo ao zenital, viabiliza que, enfim, as vidas indígenas ceifadas sejam pranteadas por iguais e sob reconhecimento público de seu morticínio. Para além do lema, memória, verdade e justiça de transição são bases de uma real construção democrática a todos os povos oprimidos do mundo, e Assassinos da Lua das Flores, pois cumpridor do objetivo, fez reverberar os nomes então encobertos por executores e pela história nacional.