Asas do Desejo: inspiração rilkeana reelabora memória social pós-guerra via embate espiritual pela alma alemã
Título original: Der Himmel über Berlin
País de origem: Alemanha Ocidental e França (1987)
Duração: 127 minutos
Gênero: drama; fantasia; romance
Direção: Wim Wenders
Roteiro: Peter Handke e Wim Wenders
Produção: Anatole Dauman e Wim Wenders
Direção de fotografia: Henri Alekan
Montagem: Peter Przygodda
Direção de arte: Heidi Lüdi
Trilha sonora: Jürgen Knieper
Figurino: Monika Jacobs
Distribuição (Brasil): Europa Filmes (1988)
Elenco: Bruno Ganz, Solveig Dommartin, Otto Sander, Peter Falk
Se a fotografia em preto e branco e os planos com frequência zenitais de Asas do Desejo (título original: Der Himmel über Berlin, 1987) (Europa Filmes, 1988) bem-criam a monotonia de certa divagação subconsciente dos dilemas da existência humana, a sensibilidade agente de seres divinos ao consolo abnegado das almas em agonia encontra retrato solene e, por isso, distanciado do mundo de desencontros do caos urbano. Neste sentido, o movimento incessante da atividade angelical de Damiel (Bruno Ganz) e de Cassiel (Otto Sander) entre os travellings empregados faz-se alegoria quase sináptica ao fluxo de consciência por que tão vigilante misericórdia precisa interceder, dada a fragilidade decadente do viver sobre os escombros aos poucos revelados de uma Alemanha cindida ao esforço de reconstrução da vida em coletividade no pós-guerra e sob a fissura reaberta à desnazificação. Narrativamente alegórica faz-se, então, a piedade dos Céus às vis ações de homens e de mulheres cujo desejo inconsciente de retorno a uma alegada infância faria afugentar responsabilidades pretéritas e contemporâneas pela inflexão dos extermínios provocados per se e a outrem em passado presentificado. No entanto, o amor despertado ao exercício da colorida humanidade da trapezista Marion (Solveig Dommartin) fez o anjo Damiel querer em verdade elevar-se à experiência de humanos sentires, pensares e fazeres na vontade de fugir ele mesmo da inércia da observação paciente dos dramas partilhados à premente incerteza do porvir para, ao presente de dúvidas, escrutinar de qual reelaboração da memória social do terror estatal há pouco vigente o futuro seria tributário.
A transição a cores, diga-se, constitui-se ato novo da reviravolta de enfrentamento da realidade sem as amarras de uma autocomiserada psicologia ou do conveniente não reconhecimento de uma materialidade fundante à sobrevivência em contexto de reparação. Refeito, então, o consciente coletivo em torno da busca de um comum desejar, o retorno à sabedoria infantil ofereceria solução mais efetiva à irracionalidade fugidia do esquecimento motivado das humanas potências ante o inefável. Existencialista, a inspiração rilkeana de Der Himmel über Berlin faz da comovente disposição de Wim Wenders à captura da ansiedade de um tempo matéria-prima de tessitura imagética primorosa das expectativas e dos horrores da tarefa histórica de refazimento daquelas alemanidades ao assombro de ressentimentos não sanados à retomada democrática e aos divisionismos doméstico e externo.
Visto para o Clube do Crítico.