Amor à Flor da Pele: maturidade do cinema de Wong Kar-wai repisa estilo único em melodrama fundamental sobre o amor
Título original: Faa yeung nin wa; 花樣年華
Países de origem: Hong Kong e França (2000)
Duração: 98 minutos
Gênero: drama; romance
Direção, roteiro e produção: Wong Kar-wai
Fotografia: Christopher Doyle e Mark Lee Ping-bin
Trilha sonora: Michael Galasso e Shigeru Umebayashi
Montagem, direção de arte e figurino: William Chang
Distribuição: Block 2 Distribution
Elenco: Tony Leung Chiu-wai, Maggie Cheung, Siu Ping-Lam, Rebecca Pan
Amantes forjados a partir de uma tentada compreensão do adultério dos respectivos conjugues reproduzem o ciclo de infidelidades, ou são por isso escusáveis? Wong Kar-wai nega a indagação e entrega neste Amor à Flor da Pele (título original: Faa yeung nin wa) (Block 2 Distribution, 2000) uma obra-prima. No retorno do diretor à Hong Kong sessentista, os sublocatários Sr. Chow (Tony Leung Chiu-wai) e Sra. Chan (Maggie Cheung) vivem uma aparente felicidade matrimonial, quando, juntos, descobrem ser traídos. A aproximação seguinte da dupla desvela a aurora de um vínculo afetivo além-pele e, para o registro eternizável do sentimento surgido, uma estática câmera voyeurística deslocada em eixo capta via peek-a-boo shots as claustrofóbicas frestas, aberturas e saídas (portas e janelas) por onde o anônimo casal foge à interposição de distintos obstáculos e à memória apenas em retrospecto de um amor irrealizado, pois proibido, quando não da ingenuidade quase juvenil em tê-lo concebido possível. Se a imagem de emoções inescrutáveis em público ganha reflexo aos espelhos, planos em detalhes recorrentes sobre as mãos talvez indiquem a persistência do desejo quanto à efetiva captura dos (relativos) poucos momentos compartilhados lado a lado, não obstante a lembrança intrusiva dos matrimônios oficiais.
A respeito da intrusividade, diga-se, os step-printings e os slow motions característicos do estilo Kar-wairiano tentam cravar enquanto presente o tempo, no entanto, fugidio da breve união ante uma posteridade narrativa. No processo, os leitmotivs caracterizam os estágios agora recordados do início do contato ainda mais íntimo dos protagonistas ocorrido nas ruas, espaço tornado de exercício da afetividade, e da distância forçosamente imposta ao temor da descoberta, sendo Quizás, Quizás, Quizás (Osvaldo Farrés, 1947) síntese circular de um luto discreto, mas desesperado. Por fim, o figurino e a direção de arte comunicam os trágicos destinos de Chow Mo-wan e de Su Li-zhen a uma comovente sutileza de intenções.
O uso dos cheongsams (vestes femininas) varia entre estampas e cores predominantes. Ao sufocamento das feminilidades e do afeto sob a moral, os papéis sociais de gênero e o conservadorismo em sua extensão até o pescoço, as formas geométricas e os tons frios metonimizam a performance do teatro do cotidiano. Ao estabelecimento gradativo da intimidade e uma vez já envolvidas as personagens de Tony Leung Chiu-wai e de Maggie Cheung, as diferentes tonalidades de verde, cor-símbolo da harmonia e do interditável chineses, e os motivos florais demonstram afetuosidades vedadas, embora reciprocamente nutridas. Cerimonial, o vermelho conjuga a potencialização da troca amorosa em destaque ao assombro dos enlaces por ora mantidos com os companheiros originais, estando a urgência de retomá-los aí repisada a uma eventual saturação. Em objetos e nos cenários compostos, o design artístico repete a lógica.
Concretizado o término, a parceria dissolve-se no segredo confidenciado às ruínas da vida a dois não materializada. Em seu lugar, o silêncio far-se-á companheiro de solidão na existência reminiscente daquela impossibilidade. A xintoísta visão de mundo de Kar-wai acerca do efêmero destrói ilusões de qualquer coerência romântica pró-longevidade, dada a certeza da morte. A recusa em talvez aceitá-la, ao contrário do imaginado, produz encantamento, e Faa yeung nin wa já é parte de crença particular sobre o que, apesar do tempo, vai durar. O cinema há de durar.
Visto para o Clube do Filme.