Ainda Estou Aqui: memória familiar desvela protagonismo feminino na luta por verdade, por justiça e por reparação aos crimes de Estado da ditadura civil-militar brasileira (1964–1985) em emocionante retorno ao cinema de Walter Salles
Título: Ainda Estou Aqui
Países de origem: Brasil e França (2024)
Duração: 137 minutos
Gênero: biografia
Direção: Walter Salles
Roteiro: Murilo Hauser e Heitor Lorega
Obra original: Marcelo Rubens Paiva (2015)
Produção: Mª. C. Bruno, Rodrigo Teixeira e Martine de Clermont-Tonnerre
Fotografia: Adrian Teijido
Montagem: Affonso Gonçalves, ACE
Direção de arte: Carlos Conti
Figurino: Cláudia Kopke
Música: Warren Ellis
Som direto: Laura Zimmerman
Mixagem de som: Stéphane Thiébaut
Caracterização: Luigi Rocchetti
Maquiagem: Marisa Amenta
Efeitos especiais: Claudio Peralta
Preparação de elenco: Amanda Gabriel
Casting: Letícia Naveira
Distribuição (Brasil): Sony Pictures
Elenco: Fernanda Torres, Fernanda Montenegro, Selton Mello, Valentina Herszage, Maria Manoella, Barbara Luz, Gabriela Carneiro da Cunha, Luiza Kosovski, Marjorie Estiano, Guilherme Silveira, Antonio Saboia, Cora Mora, Olivia Torres, Pri Helena, Maeve Jinkings, Dan Stulbach, Camila Márdila, Daniel Dantas, Humberto Carrão
Feito memorabilia, o registro de um familiar cotidiano de celebrações efetivar-se-ia interior à lembrança dos dias e da vida mais felizes à beira-mar carioca. Logo sepultada, contudo, nem mesmo o distante, porém já tensionado olhar da matriarca (Fernanda Torres) em direção à ronda de helicópteros no céu do Leblon e à passagem de tanques nas ruas seria capaz de remediar a promessa de chegada do mal. Em Ainda Estou Aqui (Sony Pictures, 2024), a visita de agentes da repressão ditatorial à residência Paiva em 20/1/1971 saturara a espera cujo não retorno comprometeria para sempre o futuro naquele lugar e, como marca indelével, o passado repetiria a própria tragédia a todo tempo.
Dourada, a fotografia de ambientação da encantadora, pois vívida, rotina de janeiro no casarão da Rua Delfim Moreira, 80 decairia ante a escuridão criada à saída do pai e do companheiro Rubens Paiva (nascido Rubens Beyrodt Paiva, 1926–1971) (Selton Mello) rumo ao cárcere, à tortura e ao extermínio sob o terror de Estado do regime de 1964–1985. Junto à decupagem, a profundidade de campo ampliada por estreitos corredores em quadro fundaria claustrofóbicas a ruptura e a dor do enfrentamento solitário de luto ainda não sabido real. À ausência finalmente impingida, diga-se, os filtros de lente em azul e em verde forjariam o declínio de Veroca (Valentina Herszage e Maria Manoella), de Eliana (Luiza Kosovski e Marjorie Estiano), de Nalu (Barbara Luz e Gabriela Carneiro da Cunha), de Marcelo (Guilherme Silveira e Antonio Saboia) e de Babiu (Cora Mora e Olivia Torres) à expectativa de regresso jamais concluída, ao medo da violência política continuada e à tristeza do não reconhecimento coletivo de sua perda ao arbítrio que hegemonizaria as (suprimidas) emoções do caminhar da protagonista na batalha por verdade e por justiça.
Em infeliz circunstância, a preocupação evidenciada desde a abertura por Eunice Paiva (nascida Maria Lucrécia Eunice Facciolla Paiva, 1929–2018) comprovou-se medida por saber alienado das mobilizações pró-resistência do marido e, neste sentido, o silêncio afigurar-se-ia estratégia de sobrevivência própria e do grupo. Comedida, a performance de Fernanda Torres implica ao corpo e mesmo à voz a represa nunca jorrada da personagem frente ao trauma, ao empobrecimento financeiro, aos desafios da infância até o adultecer dos rebentos e à luta assumida contra a ditadura civil-militar na escolha pelo ingresso na faculdade de Direito — formada aos 42 anos, a atuação de Paiva levá-la-ia ao indigenismo e à defesa dos direitos das vítimas do terrorismo estatal — . Entre memória e história pública (ver Kelley, 1976), ao cinema sobrou remoer a inépcia por reparação aos crimes cometidos e, porque sonho, ou desejo, a tela grande torna-se lugar de sentir saudade de tudo à incontornável permanência aqui.