A Primeira Barbie Negra: reparação histórica dispensa crítica anticapitalista em exaltação quase apologética a feitos de pioneiras excluídos de genealogia da gigante mundial do mercado de brinquedos

Thainá Campos Seriz
4 min readJun 26, 2024

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Pôster promocional de “A Primeira Barbie Negra” (título original: “Black Barbie: A Documentary” (2023) (Netflix, 2024), longa documental com direção e roteiro de Lagueria Davis. Foto: reprodução.

Título original: Black Barbie: A Documentary
País de origem: Estados Unidos (2023)
Duração: 100 minutos
Gênero: documentário
Direção e roteiro: Lagueria Davis
Produção: Aaliyah Williams e Lagueria Davis
Produção executiva: Sumalee Montano, Grace Lay, Camilla Hall, Milan Chakraborty, Betsy Beers, Shonda Rhimes e Jyoti Sarda
Fotografia: Sarah Garth
Montagem: Eidi Zimmerman
Trilha sonora: Esin Aydingoz
Distribuição: Netflix
Elenco: Beulah Mae Mitchell, Kitty Black Perkins, Stancey McBride-Irby, Shonda Rhimes, Julissa Calderon, Monica L. Baley, Ashley Blaine Featherson-Jenkins, Gabourey Sidibe

Excelente exemplo de micro-história aplicada ao cinema, o documentário A Primeira Barbie Negra (título original: Black Barbie: A Documentary, 2023) (Netflix, 2024) materializa uma inquietação pessoal da diretora-roteirista Lagueria Davis. A infância ausente de representações negras positivadas em âmbito cultural-midiático engendraria a resistência de Davis a brinquedos, não obstante história familiar diversa. O recurso à perspectiva interna e à trajetória de mulheres do imediato círculo relacional fá-la-ia desvelar o pioneirismo da tia Beulah Mae Mitchell entre a liderança estratégica idealizadora da linha de bonecas negras da Mattel — anterior à autonominada Barbie surgida em 1980, a marca contou com a versão negra de Francie (1967), prima-amiga da jovem Barbara, e com Christie (1968) — e os feitos das designers Kitty Black Perkins e Stacey McBride-Irby na popularização das homólogas não brancas nos mercados estadunidense e global.

Em tela, representantes das edições celebrativas das Barbies primeiramente idealizadas pelas designers negras Kitty Black Perkins (centro) e por Stacey McBride-Irby. Foto: reprodução.

A cronologia articulada no roteiro da realizadora texana bem-historiciza a influência dos resultados do experimento psicológico conduzido por Mamie P. e por Kenneth Clark (Doll Test, 1940) acerca dos impactos do racismo educacional em crianças e do esforço ativista negro na conquista legal da dessegregação escolar (caso Brown v. Board of Education of Topeka, 1951–3) e da queda de sanções à manufatura de produtos direcionados. Já no ano do maior dos lançamentos da companhia de Ruth e de Elliot Handler (1959), o casal seria provocado a respeito da fabricação da congênere negra de seu principal ativo — Mitchell dirigira-se a R. Handler (1916–2002) com o mesmo objetivo — e, em 1968, a parceria firmada com a Shindana Toys Company, empresa criada por uma entidade sem fins lucrativos negrocentrada surgida após os levantes de Watts (Operation Bookstrap Inc.; Los Angeles, 1965), ofereceria ao mundo uma Baby Nancy projetada com características fenotípicas perfeitas ao grupo racial e similares representativas de públicos não brancos (indígenas e amarelos). Os vultosos números de vendas da pequena de nome Nancy desencadearam a concorrência responsável pelo fechamento do negócio criado por Louis Smith e por Robert Hall em 1983, e a razão seria o sucesso da Barbie idealizada por Perkins.

Exemplar de Baby Nancy (1968), sucesso de vendas da Shindana Toys Company, uma entidade sem fins lucrativos negrocentrada de idealização dos ativistas Louis Smith e Robert Hall. Foto: reprodução.

Agregada ao voice-over de Lagueria D., a sequência de depoimentos de grandes personalidades femininas e negras nacionais — a maioria outrora homenageada com edições especiais de Barbie e cujas memórias afetivas vinculam-se à boneca, a exemplo da roteirista Shonda Rhimes (falamos de uma produção Shondaland), da 1ª bailarina Misty Copeland, da atriz Gabourney Sibide (Preciosa — Uma História de Esperança, 2009), da deputada democrata Maxine Waters e da esgrimista Ibtihaj Muhammad — entremeada a entrevistas com pessoas pedagogas e ex-funcionárias da Mattel inauguraria reflexões pertinentes, pois atualizadas, ao avanço dos debates sobre capitalismo, representatividade e currículo, incluindo-se o alusivo aos limites sobressaídos da justaposição das variáveis supramencionadas. Em determinado momento, o comentário anticapitalista proposta por London Starnes, especialista consultade, é constrangedoramente ignorado ante a opinião, agora, reconsensuada de L. Davis à dor (contém ironia) estabelecida inicial, que passa a uma exaltação (não injustificada) do legado das ancestrais empreendida, porém, às expensas de aceno quase apologético à gigante do setor. Reconhecido o caráter pedagógico da ludicidade à informação dos sentidos e da imagem do ser africano em diáspora, a retórica de Starnes atentaria antes ao reformismo da prática e ao sequestro da plataforma de lutas e da agenda antirracistas às injunções mercadológicas, sem mais ameaças contrassistêmicas ao regime econômico vigente.

Demanda histórica, o direito ao brincar e à visibilidade é pauta, contudo, vinculável à crítica ideológica das bases racista, misógina, capacitista e LGBTQIAPN+fóbica do capitalismo neoliberal e de tecnologias sociais correlatas. Saída efetivada conjuntural em relação a período distinto, a tentativa de subversão interior do status quo provara-se fracassada e, por isso, ética política outra refunda-se imperativa. Black Barbie: A Documentary pode ser conferido no streaming (Netflix).

Mais edições especiais lançadas sob a inspiração da Barbie pioneira de K. B. Perkins (1980). Fotos: reprodução.

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Thainá Campos Seriz

Historiadora (UFF). Pesquisa e revisão de conteúdo no Canal Preto. Podcaster no ObSessões de Cinema.