A Paixão Segundo G.H.: romance homônimo sessentista de Clarice Lispector recebe adaptação para o cinema e reverbera crítica autoral à virada autoritária da década de 1960 brasileira
Título original: A Paixão Segundo G.H.
País de origem: Brasil (2023)
Duração: 124 minutos
Gênero: drama
Direção: Luiz Fernando Carvalho
Direção assistente: Kity Féo
Roteiro: Melina Dalboni e Luiz Fernando Carvalho
História original: Clarice Lispector (1964)
Produção: Luiz Fernando Carvalho, Paulo Roberto Schmidt, Marcio Fraccaroli, Veronica Stumpf e Marcello Ludwig Maia
Fotografia: Paulo Mancini e Miqueias Lino
Montagem: Marcio Hashimoto e Nina Galanternick
Cenografia: Mariana Villas-Bôas
Figurino: Thanara Schönardie
Empresas produtora: Paris Entretenimento, LFC Produções, República Pureza Filmes e Academia de Filmes
Empresa coprodutora: Elenora Granata
Distribuição: Paris Filmes
Elenco: Maria Fernanda Cândido, Samira Nancassa
Às letras deveras criativas, justapõe-se o cinema para fazê-las durar. Adaptação dirigida por Luiz Fernando Carvalho e roteirizada por Melina Dalboni e por Luiz Fernando Carvalho do romance homônimo (1964) de autoria de Clarice Lispector (1920–1977), A Paixão Segundo G.H. (2023) (Paris Filmes, 2024) captura já à deformidade imagética da cena de abertura a claustrofobia por que a razão de aspecto reduzida e os primeiríssimos planos fazem sugerir o aprisionamento da protagonista ao teatro social de seus gênero e classe. Da apatia não menos subjugadora das brancas feminilidades ao patriarcado transposta às cores pastéis predominantes, em tons saturadamente wong kar-wainianos, o vermelho e o verde destacam-se na sondagem dos efeitos psíquicos da composição com o status quo da personagem-título interpretada por Maria Fernanda Cândido e da busca do equilíbrio a restabelecer-se no acesso então interditado a si e a outrem. Neste sentido, o movimento de eixo da câmera estática superdilata o tempo alienador das subjetividades de mulheres a uma perfeição arquetípica delirante.
O portal atravessado à representação gráfica de uma bandeira brasileira tremulante faz da passagem de G.H. ao quarto da há pouco demitida trabalhadora doméstica Janair (Samira Nancassa) barreira a superar do contato indiferente, quando não vedado, com a realidade do país. A crítica de C. Lispector, creia-se, dirige-se-ia à reprodução supremacista racial do poder masculino às senhoras e às baronesas das oligarquias políticas entre as viradas autoritária e antitrabalhista pós-1963 reinformadoras, em especial, a partir do golpe civil-empresarial-militar de 1964, do ranço escravocrata (anti-indígena e antinegro) àquela altura civilizado (Elias, 1939) às elites nacionais. De natureza kafkiana (1915), o catártico encontro com a barata confirma-se paranoia porquanto insaturada à percepção da decadência e da irrelevância dos tipos femininos moldados aos ideais da brancura e reprodutores dos masculinismos raciautoritários, sendo o vazio subjetivo daí decorrido gerador caótico de identidade metamorfoseada ao assombro conradiano (1899; 1902) das mazelas do Brasil. Uma vez ontológico ou assumido identitário, movimento seguinte à investida nuclear sobre território interior desconhecido perfaria a ruptura com as amarras patriarcais e a resistência ante os arbítrios exteriores.
O horror clariceano diante das coisas é o da conclusão do trabalho da vida ao viver consciente do próprio lugar no mundo. Porque reconstituídos ao coletivo, a paixão e o amor resultam processo de refazimento da humanidade a não indiferença do (O)utro, enquanto a assunção à ancestralidade negro-indígena efetiva-se, ou o deveria, dada a iminência à queda autocrata, reparatória ao passado genocida. Se detratores e detratoras caem à ignorância do caráter político da biobibliografia em debate, sucesso mais recompensador ainda será a consolidação democrática via memória, verdade e justiça.