“A Mulher Rei” e outro marco inaugural para mulheres negras no audiovisual

“A Mulher Rei” é marco inaugural de/para nova ação e presença de mulheres negras no audiovisual.

Thainá Campos Seriz

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Cartaz de divulgação de “The Woman King” (“A Mulher Rei”).

Eu me reconstruo no cinema. O cinema atribui materialidade às minhas reflexões e, no limite, aos meus sonhos. Mesmo processo heteroatribuído, já que a construção narrativa é produção intelectual alheia, de fato, ver mundos na telona devolve a mim o senso de agência. “The Woman King”, ou “A Mulher Rei” (Sony Pictures, 2022), cumpriu comigo este papel e o cumprirá a cada pessoa espectadora. O longa, com direção de Gina Prince-Bythewood, destitui África da imagem ocidentalmente forjada de continente sem história, miserável e famélico. Em seu lugar, beleza, grandiosidade, tradição e abundância. Se, em “Black Panther” (“Pantera Negra”), as Dora Milaje, subsidiárias à trama, com pouca voz e poder decisório — apesar de exército exclusivamente feminino reverenciado e reconhecido por sua impetuosidade e lealdade — , as Agojie, ou Ahosi (“esposas do Rei”, no idioma fon [ou fom], ou ainda Mino, “nossas mães”), inspirações das primeiras, são recuperadas como ação reparatória à sua invisibilização histórica e, mais além, ao papel político de mulheres negras, em especial de pele retinta, na história humana.

Longe das imagens de controle que versam sobre sua agressividade, subserviência abnegada e dessexualização, o destacamento militar de mulheres uma vez formado para a caça de elefantes e recrutado, inicialmente, entre as esposas do rei (significado do nome Ahosi) no reinado de Uebajá (c. 1645/50–1680/85), arroçu, terceiro rei de Daomé, e depois incorporadas à guarda real, no século XVIII, as Agojie incorporaram desde voluntárias das classes médias às filhas rebeldes das famílias abastadas desprezadas por pais e maridos que as não conseguiam submeter. Com o tempo, tornaram-se o principal ativo militar do reino, com orçamento robusto e formalização de seus quadros no reinado de Guezo, arroçu (1818–1858), e a linha de resistência mais feroz e bem-sucedida à série de invasões coloniais com palco em África, na segunda metade do século XIX, chegando a reunir entre 6 (seis) e 8 (oito) mil mulheres. Viola Davis (Nanisca), Thuso Mbedu (Nawi), Sheila Atim (Amenza) e Lashana Lynch (Izogie) protagonizam histórias cuja complexidade dá conta de traumas, dores, raiva, alegrias e solidariedade em geral negados a mulheres pretas e revela, sem medo, contradições e feridas ainda abertas como convocação ao enfrentamento via luta por justiça, equidade e reparação.

Contradições e feridas ainda abertas são convocação ao enfrentamento via luta por justiça, equidade e reparação.

Um épico protagonizado por mulheres pretas em África era parte da demanda não só de agentes da sétima arte, como também de público negro e feminino sedento por outro imaginário de si e seu grupo. Mesmo eventuais falhas de roteiro e imprecisões históricas pontuais tornam-se insignificantes ao que, na grande tela, foi realizado e se realizará a partir deste novo marco. Sim, “A Mulher Rei” é marco inaugural de/para nova ação e presença de mulheres negras no audiovisual. Levantem-se!

Cartaz de divulgação de “The Woman King” (“A Mulher Rei”).

Em honra àqueles que vieram antes e morreram por nos sonharem em outro tempo. Eu vivo, porque vocês vivem comigo. Estejam conosco.

Como indicações de leitura/escuta, deixarei, na sequência, texto de Morena Mariah publicado neste mesmo Medium (afrofuturo) sobre as Ahosi (link 1), bem como o episódio de seu podcast, Afrofuturo, de mesmo tema (link 2) e vídeo de Esmael, autor da página “África do jeito que nunca viu”, no Instagram, a respeito de elementos culturais da sociedade daomeana retratados no filme (hiperlink).

Sobre algumas críticas acerca de possíveis omissões históricas — a meu ver, aqui, especificamente, inverídicas, a considerar que são respondidas no próprio filme — , palavras de Viola Davis (a partir de 00:28:17).

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Thainá Campos Seriz
Thainá Campos Seriz

Written by Thainá Campos Seriz

Historiadora (UFF). Pesquisa e revisão de conteúdo no Canal Preto. Escrevo sobre cinema.

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