A Hora da Estrela: relançamento nos cinemas de adaptação a romance seminal (1977) da literatura de Clarice Lispector deveria reencontrar o país com a esperança de sua continuidade
Título: A Hora da Estrela
País de origem: Brasil (1985/2024)
Duração: 96 minutos
Gênero: drama; comédia
Direção: Suzana Amaral
Roteiro: Alfredo Oroz e Suzana Amaral
História original: Clarice Lispector (1977)
Produção: Assunção Hernandes
Fotografia: Edgar Moura
Montagem: Idê Lacreta
Trilha sonora: Marcus Vinicius
Figurino: Mauricio Kawamura
Distribuição: Sessão Vitrine Petrobras
Elenco: Marcélia Cartaxo, Tamara Taxman, Fernanda Montenegro, Umberto Magnani, José Dumont, Marcus Vinicius
As aspirações à conquista do mundo de uma migrante nordestina encontraram nas letras coloridas por Clarice Lispector (1920–1977) razão de existir naquele decadente, pois autoritário, Brasil dos anos pós-milagre econômico ditatorial (1968–1973). A detratores ou a desconhecedores da obra clariceana, afirme-se, A Hora da Estrela (José Olympio, 1977) engendra-se romance social setentista aos sonhos de futuro do país cuja adultez mantém-se adiada — execre-se o ranço escravocrata das brancas elites — . Restaurada no âmbito do projeto Sessão Vitrine Petrobras e outrora das únicas representantes brasileiras nos Oscars realizadas por mulheres, a obra homônima com direção de Suzana Amaral (1985) e roteiro de Alfredo Oroz e de Suzana Amaral reconstrói a visualidade certa feita idealizada à leitura das tintas da autora referencial entre a visão agente da indefectível protagonista vivida por Marcélia Cartaxo contemplada aos espelhos, contudo, aprisionadores — verifique-se os planos objetivos abertos à profundidade de campo ampliada em um movimento de zoom out — da alma da doce e ingênua Macabéa.
Baratos, cachorro-quente e Coca-Cola alimentavam a contida datilógrafa de cabelos sempre presos e de roupas puídas também adoradora de queijo com goiabada e ouvinte atenta da Rádio Relógio, signos descritivos da pobreza a que a presença retirante na megalópole paulistana impunha à sobrevivência. Ao largo de romantizações pró-precariedade, passear no metrô aos domingos e emocionar-se à audição de uma sinfonia, admita-se, compunham resistências possíveis ante o cotidiano brutalizado ao subemprego, às microagressões xenofóbicas e ao relacionamento de notas abusivas com Olímpico (José Dumont). Comentário adicional à feminização da quase miséria é o recurso criminalizado ao aborto por Glória (Tamara Taxman), sendo o acesso clandestino materialidade não apenas verificável a mulheres e a pessoas com útero de diferentes espectros sociorraciais e de classe, como garantia à vida restrita a quem mais, e melhor, pode pagar. Igualmente brasileiríssimo, o expediente ao oculto e ao sagrado, ou ao profano, das fés populares é captado por Lispector e por Amaral enquanto crença imorredoura nas possibilidades ansiadas disponíveis à consecução de inconfessos desejos.
Similar à charlatã realidade à brasileira, a quiromante Carlota (Fernanda Montenegro) reservara grandiosas expectativas para o imediato presente da personagem de Cartaxo, ao fim, irrealizadas por um atropelamento. Em dimensão onírica, a jovem corre rumo à promessa a cumprir-se de si, porque antes tragada pelo genuíno querer. Se suplantadas e suplantados somos às veias abertas (Galeano, 1971) deste infernal lugar, sonhadoras e sonhadores, ao contrário, ainda permanecemos. A vida, dissera Clarice L., começa com um sim e, a fim de dizê-lo, é preciso fazer do agora tempo de morangos.
O relançamento nos cinemas da adaptação de clássico tão seminal da literatura é esperança renovada na continuidade coletiva. Dois já são os romances adaptados à grande tela de C. Lispector em 2024, o que, à luz do concluído aqui, deve-se-ia considerar um sinal. Por isso, assistir ao longa na sala escura faz-se urgente.