A Hora da Estrela: relançamento nos cinemas de adaptação a romance seminal (1977) da literatura de Clarice Lispector deveria reencontrar o país com a esperança de sua continuidade

Thainá Campos Seriz
3 min readMay 15, 2024

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Pôster promocional de “A Hora da Estrela” (1985/2024), longa dirigido por Suzana Amaral e roteirizado por Alfredo Oroz e por Suzana Amaral em adaptação ao romance homônimo (1977) de autoria de Clarice Lispector (1920–1977). Foto: reprodução.

Título: A Hora da Estrela
País de origem: Brasil (1985/2024)
Duração: 96 minutos
Gênero: drama; comédia
Direção: Suzana Amaral
Roteiro: Alfredo Oroz e Suzana Amaral
História original: Clarice Lispector (1977)
Produção: Assunção Hernandes
Fotografia: Edgar Moura
Montagem: Idê Lacreta
Trilha sonora: Marcus Vinicius
Figurino: Mauricio Kawamura
Distribuição: Sessão Vitrine Petrobras
Elenco: Marcélia Cartaxo, Tamara Taxman, Fernanda Montenegro, Umberto Magnani, José Dumont, Marcus Vinicius

As aspirações à conquista do mundo de uma migrante nordestina encontraram nas letras coloridas por Clarice Lispector (1920–1977) razão de existir naquele decadente, pois autoritário, Brasil dos anos pós-milagre econômico ditatorial (1968–1973). A detratores ou a desconhecedores da obra clariceana, afirme-se, A Hora da Estrela (José Olympio, 1977) engendra-se romance social setentista aos sonhos de futuro do país cuja adultez mantém-se adiada — execre-se o ranço escravocrata das brancas elites — . Restaurada no âmbito do projeto Sessão Vitrine Petrobras e outrora das únicas representantes brasileiras nos Oscars realizadas por mulheres, a obra homônima com direção de Suzana Amaral (1985) e roteiro de Alfredo Oroz e de Suzana Amaral reconstrói a visualidade certa feita idealizada à leitura das tintas da autora referencial entre a visão agente da indefectível protagonista vivida por Marcélia Cartaxo contemplada aos espelhos, contudo, aprisionadores — verifique-se os planos objetivos abertos à profundidade de campo ampliada em um movimento de zoom out — da alma da doce e ingênua Macabéa.

Assim nomeada por uma promessa da mãe por sua vida, Macabéa (Marcélia Cartaxo) era ouvinte atenta da Rádio Relógio e preferia queijo com goiabada ao mais baratos cachorro-quente e Coca-Cola que tinha de comer todos os dias em cada refeição. Foto: reprodução.

Baratos, cachorro-quente e Coca-Cola alimentavam a contida datilógrafa de cabelos sempre presos e de roupas puídas também adoradora de queijo com goiabada e ouvinte atenta da Rádio Relógio, signos descritivos da pobreza a que a presença retirante na megalópole paulistana impunha à sobrevivência. Ao largo de romantizações pró-precariedade, passear no metrô aos domingos e emocionar-se à audição de uma sinfonia, admita-se, compunham resistências possíveis ante o cotidiano brutalizado ao subemprego, às microagressões xenofóbicas e ao relacionamento de notas abusivas com Olímpico (José Dumont). Comentário adicional à feminização da quase miséria é o recurso criminalizado ao aborto por Glória (Tamara Taxman), sendo o acesso clandestino materialidade não apenas verificável a mulheres e a pessoas com útero de diferentes espectros sociorraciais e de classe, como garantia à vida restrita a quem mais, e melhor, pode pagar. Igualmente brasileiríssimo, o expediente ao oculto e ao sagrado, ou ao profano, das fés populares é captado por Lispector e por Amaral enquanto crença imorredoura nas possibilidades ansiadas disponíveis à consecução de inconfessos desejos.

Similar à charlatã realidade à brasileira, a quiromante Carlota (Fernanda Montenegro) reservara grandiosas expectativas para o imediato presente da personagem de Cartaxo, ao fim, irrealizadas por um atropelamento. Em dimensão onírica, a jovem corre rumo à promessa a cumprir-se de si, porque antes tragada pelo genuíno querer. Se suplantadas e suplantados somos às veias abertas (Galeano, 1971) deste infernal lugar, sonhadoras e sonhadores, ao contrário, ainda permanecemos. A vida, dissera Clarice L., começa com um sim e, a fim de dizê-lo, é preciso fazer do agora tempo de morangos.

Mesmo empobrecida pelo Brasil, Macabéa (Marcélia Cartaxo) perseguia os sonhos de uma vida melhor ao embalo da amada Rádio Relógio. Liberta pelo próprio querer, no entanto, o desejo e o ímpeto por futuro distintos terminariam tragados pela realidade, como ocorre a cada pessoa brasileira. Em A Hora da Estrela (1977 e 1985), Lispector e Amaral discutiriam o país pós-1968–1973 pela ótica desta migrante nordestina. Fotos: reprodução.

O relançamento nos cinemas da adaptação de clássico tão seminal da literatura é esperança renovada na continuidade coletiva. Dois já são os romances adaptados à grande tela de C. Lispector em 2024, o que, à luz do concluído aqui, deve-se-ia considerar um sinal. Por isso, assistir ao longa na sala escura faz-se urgente.

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Thainá Campos Seriz
Thainá Campos Seriz

Written by Thainá Campos Seriz

Historiadora (UFF). Pesquisa e revisão de conteúdo no Canal Preto. Escrevo sobre cinema.

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