A história das tensões — e solidariedade — entre as comunidades negra e asiático-estadunidense, explicada
Como a supremacia branca tentou dividir negros, negras e asiático-estadunidenses — e como ambas as comunidades trabalharam para encontrar um terreno comum.
Este texto é produto de tradução do artigo intitulado “The history of tensions — and solidarity — between Black and Asian communities, explained”, de autoria de Jerusalem Demsas e Rachel Ramirez, para o veículo Vox. Para acessar o conteúdo original, basta clicar aqui.
Contra o pano de fundo dos protestos antirracismo do último verão, a violência racista recrudescia-se nas Chinatowns e comunidades asiático-estadunidenses pelo país.
Em julho, uma senhora chinesa de 89 anos era queimada enquanto caminhava na rua e após ser agredida com um tapa no rosto no Brooklyn, Nova Iorque. Os dois assaltantes, conta, não disseram uma única palavra antes de atacá-la. Ela lutou para apagar o fogo, que deixou uma extensa marca de queimadura nas costas de sua blusa rosa — uma terrível lembrança do ataque.
Este não seria um incidente isolado. Entre 19 de março e 31 de dezembro de 2020, mais de 2.808 relatos em primeira mão do ódio antiasiático foram apurados, de acordo com relatório da Parem com o Ódio contra Asiático-Americanos/as e das Ilhas do Pacífico (Stop AAPI Hate, no original), organização que mapeia episódios de violência antiasiática — os quais registram aumento de 150% desde 2019. Da interdição de acesso a estabelecimentos a disparadas e cuspidas, asiático-estadunidenses vêm reportando assédios verbais e ataques físicos ao longo da pandemia, assim como seu uso enquanto bode-expiatório xenofóbico do espraiamento do vírus da Covid-19 supostamente originado na China. De acordo com uma pesquisa conduzida no último mês de abril, 32% dos e das estadunidenses testemunharam a culpabilização do povo asiático pelo novo coronavírus, e 60% dos e das asiático-estadunidenses presenciaram tal tipo de comportamento.
Neste ano, os ataques parecem ter assumido uma direção além de mais perigosa, visível: um homem filipino de 61 anos teve o rosto cortado ao embarcar no metrô em Nova Iorque; uma mulher vietnamita de 64 anos foi assaltada em São José, pouco antes do Ano Novo Lunar; e uma mulher tailandesa de 84 anos foi derrubada em São Francisco. A queda provocou a sua morte.
Tais ataques podem ter sido estimulados pela pandemia de Covid-19 e o então presidente Donald Trump, que repetidamente disparava insultos racistas ao referir-se ao vírus, mas o sentimento antiasiático nos Estados Unidos não é novo — basta olhar para a Lei de Expulsão Chinesa, de 1882, de banimento da cidadania estadunidense a sinoimigrantes, e a ordem executiva de 1942, do presidente Franklin D. Roosevelt (1882–1945), que internou nipoestadunidenses em campos de concentração.
“Quando a pandemia foi declarada e o presidente começou a chamar o vírus de ‘gripe kung’, ou vírus chinês, aqueles racialmente letrados logo perceberam que experienciaríamos a emergência de um tipo de racismo até então não visto”, afirma o pastor Raymond Chang, fundador e presidente da Colaboração Cristã Asiático-Americana (Asian American Christian Collaborative, no original), grupo ativista religioso que advoga em favor das comunidades asiático-estadunidenses e também envida a solidariedade negroasiática. “O racismo antiasiático sempre foi parte do tecido social do país. Varia apenas entre ser mais aberto ou violento, sutil e velado”.
Em tempos de sentimento antiasiático, o foco nas relações entre as comunidades negra e asiática também não é novo. Muitos dos ataques que ganharam propalada atenção envolveram assaltantes negros e negras, ameaçando inflamar as já existentes tensões entre asiático-estadunidenses e negroestadunidenses. Enquanto não há evidências apuradas pela Vox da responsabilidade de negroestadunidenses sobre o aumento do número de ataques, ou de sua maior hostilidade a asiático-estadunidenses em relação ao resto da população, a narrativa acerca da antipatia negra antiasiática tem raízes nas políticas econômica e de imigração, as quais historicamente opuseram uma e outra comunidade.
Nos Estados Unidos, “o que nós precisamos perceber é que há uma estrutura secular, havendo sempre um grupo dominante e outro subjugado”, disse Scott Kurashige, professor e catedrático de estudos etnicorraciais comparados da Universidade Cristã do Texas à Vox. “Embora haja certa imutabilidade quanto à compreensão estrutural de que este país possua uma classe supremacista branca dominante desde a sua fundação, isto não se reflete nas mesmas técnicas de governança, ideologia ou pessoas no poder”.
Em última análise, falha-se em lembrar, ou admitir, o que trouxe os EUA a este patamar das hierarquias raciais e das persistentes, prolongadas tensões negroasiáticas: a supremacia branca. A supremacia branca cria a segregação, o estado policialesco e a escassez de investimentos em bairros de baixa renda, assim a criação do mito da “minoria modelo” — cada um destes elementos criou barreiras entre as comunidades negra e asiática. De fato, o nacionalismo cristão branco, mais que qualquer outra ideologia, moldou as visões xenofóbica e racista sobre a Covid-19, de acordo com um estudo recente. Para ambas as comunidades superarem tal estigma, será importante atentarem-se à raiz de sua opressão e unirem esforços na luta.
O longo histórico de solidariedade negroasiática contra a opressão e racismo estruturais vem sendo, entretanto, obscurecido por estas recentes altercações. No final dos anos 1960, por exemplo, ativistas negros e negras, asiáticos e asiáticas lideraram o movimento Frente de Libertação do Terceiro Mundo (Third World Liberation Front Movement, no original), que introduziu disciplinas sobre estudos etnicorraciais nos currículos da Califórnia. Hoje, membros e membras de ambas as comunidades apoiam-se mutuamente nas manifestações pelas vidas negras e contra a violência antiasiática.
“Este é o momento de contar não apenas a história compartilhada de culpabilização e ódio com alvo sobre asiáticos e asiáticas, imigrantes e outras comunidades não-brancas, mas também sobre a nossa própria história de ação e mobilização por mudanças — aquela na qual nos erguemos em solidariedade a outros grupos”, disse Cynthia Choi, cofundadora da Stop AAPI Hate.
Como a política criou as condições para as tensões negroasiáticas
Os modelos de compreensão e interpretação do racismo são usualmente hipersimplificados e conduzem à frustração e ao ressentimento. Um simples modelo racista que classifica pessoas como ou perpetradoras, ou vítimas do racismo aparta da realidade aqueles indivíduos que congregam diversas identidades para além da racial. O fato é que negros e negras estadunidenses nasceram em território nacional e, como tais, e seus, suas compatriotas, estão suscetíveis aos sentimentos xenofóbicos e nacionalistas que culpabilizam o “outro” — neste caso, asiático-estadunidenses, vistos e vistas como “eternos estrangeiros”, mesmo se nascidos e nascidas no país.
Enquanto negros e negras estadunidenses (majoritariamente democratas) têm frequentemente visões mais liberais acerca da reforma imigrantista, há também pesquisas indicando que o povo negro pode perceber certa competição econômica em relação a outras comunidades de imigrantes e, por isso, manifestar amplo sentimento anti-imigrante e até racismo.
“AS TENSÕES ENTRE NEGROS E ASIÁTICOS, ASSIM COMO AS HIERARQUIAS RACIAIS, SÃO HISTÓRICAS, MAS HÁ UMA FALHA EM NÃO LEMBRAR COMO OS EUA CHEGARAM A ESTE LUGAR: A SUPREMACIA BRANCA”.
Estudiosos e estudiosas também assinalam que muito desta competição é recrudescida em virtude de uma hierarquização racial já subjugadora e subvalorizadora das existências negras. Quando os recém-chegados entram no país, eles e elas encontram um sistema de privilégios e outras vantagens reservado aos mais abastados, os brancos e brancas estadunidenses, gerando assim ressentimento e nenhuma solidariedade entre todos aqueles e aquelas a quem pouco disso sobrou. O conflito entre coreanoestadunidenses, negros e negras estadunidenses é o exemplo mais visível deste fenômeno.
Em 1965, os Estados Unidos encerraram o sistema de imigração por cotas e pressionaram pela entrada de mão-de-obra altamente qualificada. O grupo mais apto, então, a fazê-lo sob estas condições eram os e as coreanoestadunidenses, selecionados e selecionadas aos montes — em razão da supercapacidade socioeconômica e educacional comparada não apenas àqueles e àquelas em seu país de origem, como também aos nativos e nativas estadunidenses.
Yến Lê Espiritu, professora de etnicidades especializada em estudos asiáticoamericanos da Universidade da Califórnia — San Diego, explicou como esta população altamente educada e chegada aos Estados Unidos foi incapaz de reproduzir parte do status social gozado em seus países de origem, em virtude da discriminação racial e outras barreiras. Ao contrário, encontraram emprego como proprietários e proprietárias de pequenos negócios, a maioria abertos em comunidades negras.
“Muitos desses e dessas imigrantes não pretendiam se tornar pequenos e pequenas proprietários e proprietárias. Estruturalmente, o contexto apontava que não conseguiriam reaver certo status educacional e os empregos até então gozados”, disse Espiritu à Vox. A proximidade com o povo negro deveu-se a só poderem iniciar seus negócios em “áreas economicamente desfavorecidas”. Isto, ligado ao fato de o racismo antinegro inviabilizar o financiamento de iniciativas econômicas de membros e membras da comunidade negra, aumentou o ressentimento em ambos os lados.
Espiritu comenta uma barreira adicional: ambos os grupos foram sempre estimulados a desconfiarem um do outro. Dado o consumo de propaganda dos veículos estadunidenses, coreanos e coreanas internalizaram as representações racistas de negros e negras estadunidenses como violentos e violentas, ignorantes e pobres — assim como estes e estas, e todo país, assistiam sobre a desconfiança de coreanos e coreanas ainda durante a Guerra da Coreia (1950–3).
Edward T. Chang, professor de estudos étnicos da Universidade da Califórnia — Riverside, explicou que a teoria da “minoria intermédia” ajuda a elucidar as tensões posteriormente elevadas sobre os negócios de propriedade de coreanos e coreanas.
“‘A minoria intermédia’ é um derivado das experiências históricas de judeus na Europa, chineses e chinesas no Sudeste Asiático, indianos e indianos em África”, disse Chang à Vox. As minorias intermédias entre grupos dominantes e subjugados da sociedade geralmente ocupam profissões em grande número relacionadas às indústrias do varejo e serviços, como mercearias e lojas de bebidas, explica.
Estes grupos lidam diariamente um com o outro como brancos e brancas estadunidenses não fazem, em razão de bairros, centros comerciais e escolas segregados. Entre os estereótipos racistas internalizados e as barreiras linguísticas e culturais que os separam, pouco surpreendem os conflitos surgidos de tão contínuas interações.
Na memória coletiva estadunidense, um dos mais notáveis fica por conta dos levantes ocorridos em Los Angeles, em 1992, motivados pela absolvição de quatro policiais brancos depois do registro de agressões contra Rodney King, um homem negro. Ao longo das semanas seguintes, mais de cinquenta pessoas foram mortas e outras mil ficaram feridas na revolta que mostrou não apenas a raiva com a sentença, mas os ressentimentos de longa data entre as comunidades negra e coreana na área de Los Angeles. De acordo com a CNN, cerca de metade do prejuízo de um bilhão de dólares causado com o episódio atingiu negócios coreanos.
Muitos e muitas acreditam que os levantes de 1992 são emblemáticos das relações entre negros, negras e asiático-estadunidenses, apesar de produtos de tempo e lugar específicos. Depois das manifestações, igrejas, mobilizadores e mobilizadoras comunitários e comunitárias trabalharam entre os grupos suas histórias partilhadas de opressão — muitos proprietários e proprietárias coreanos e coreanas, por exemplo, não sabiam sobre a violência e discriminação enfrentadas pelo povo negro nos Estados Unidos.
Hoje, mais de nove em cada dez coreanoestadunidenses acreditam que o povo negro sofre algum tipo de discriminação, de acordo com pesquisa da Asiático-Americanos e Americanas promovendo a justiça (Asian Americans Advancing Justice, no original). Enquanto isso, 70% dos coreanoestadunidenses acreditam que o governo deveria fazer mais quanto à proteção dos direitos civis de negros e negras estadunidenses.
Supremacia branca está no centro destas tensões, incluindo o mito da minoria modelo
De acordo com especialistas e ativistas que o experenciaram em primeira mão, as tensões negroasiáticas obscureceram a causa raiz do problema estadunidense: a supremacia branca.
“O racismo e a supremacia branca criaram cisões de longa data entre comunidades não-brancas”, afirma o Pastor Chang. “As engrenagens de funcionamento do sistema, a retórica criada em torno das tensões negroasiáticas serão usadas para negligenciar o papel exercido pela supremacia branca em seu agravamento”.
Ser branco/branca é sentar no topo da classe dominante estadunidense — desde que a pele retinta tem sido historicamente considerada como indesejável e equiparada ao ser pobre nas visões ocidental e eurocêntrica, ninguém que não seja branco/branca recai ao patamar mais inferior desta hierarquia. No paradigma negro-branco dominante, imigrantes asiáticos e asiáticas e asiático-estadunidenses foram obrigados e obrigadas a encontrarem uma forma de se encaixar, correndo todos e todas o risco de completa invisibilidade. Aqueles e aquelas porventura assimilados e assimiladas à estrutura dominante em geral incorporaram as noções de hierarquias racial e supremacismo branco — incluindo-se a internalização do racismo frente às suas próprias comunidades de pertencimento.
Entretanto, nem a todos asiáticos e asiáticas foram oferecidas oportunidades: a categoria asiático-estadunidense encampa aproximadamente 40 etnicidades e um amplo mosaico de status econômicos, religiões, regiões e culturas. Embora asiático-estadunidenses constituam o grupo com melhores condições financeiras, ou até mais ricos, entre as chamadas minorias no país, eles e elas também registram as maiores disparidades de renda que qualquer outro grupo racial. Mianmarense-americanos e americanas, por exemplo, representam o grupo com as mais elevadas taxas de pobreza se comparados e comparadas a outras populações de ascendência asiática, particularmente nipoestadunidenses. A explicação principal deve-se às diferenças estabelecidas entre imigrantes asiáticos e asiáticas no momento da chegada aos Estados Unidos, entre vistos cedidos pela maior qualificação profissional/educacional e no caso de refúgio.
“Nossa história é a de busca por pertencimento e aquela em que nossas escolhas são geralmente limitadas pelo apagamento, exclusão ou assimilação”, afirma o Pastor Chang. “Em última análise, nós escolhemos lutar contra a invisibilidade assimilacionista, embora isso quase tenha nos levado a desistir de muito do nosso patrimônio cultural. Uma vez beneficiada, a sociedade branca não puniu sobremaneira asiático-estadunidenses. Se percebidos e percebidas, entretanto, como ameaças, eles e elas (brancos e brancas) nos encarceraram ou excluíram completamente”.
Este ímpeto assimilacionista perpetuou o mito da minoria modelo e ajudou a inflamar tensões raciais. O modelo originou-se no período da concentração em campos de nipoestadunidenses durante a Segunda Grande Guerra (1939–1945). Uma vez ameaçados e ameaçadas com a deportação ou a internação compulsória, nipoestadunidenses permaneceram reticentes e se fizeram vistos e vistas como os trabalhadores e trabalhadoras árduos e árduas os quais/as quais, como Choi coloca, “ergueram-se sobre suas botas e superaram barreiras”. Isto cristalizou a crença de que estadunidenses não-brancos e brancas podiam prosperar e superar o racismo nos Estados Unidos, sem o devido reconhecimento específico das lutas históricas de afrolatinos e latinas e do papel do colorismo em criar um sistema de castas acirrador de conflitos interraciais.
“O estereótipo da minoria modelo não fora elaborado para caracterizar asiático-estadunidenses, mas sim afroestadunidenses como incompletos, incompletas e inferiores a brancos e brancas a partir da comparação com asiático-estadunidenses enquanto representantes ou peões neste jogo”, contou Kurashige à Vox. “Isto nunca serviu como retrato preciso, mas foi conscientemente manipulado para distorcer e estereotipar asiático-estadunidenses”.
“O RECENTE AUMENTO DOS ATAQUES ANTIASIÁTICOS REFLETIU O MESMO SENTIMENTO QUE SEMPRE ATRAVESSOU OS ESTADOS UNIDOS”.
Por exemplo, há outras etnicidades que atendem critérios superficiais da chamada minoria modelo, mas dificilmente seriam vistas da mesma forma. De acordo com pesquisadores e pesquisadoras da Universidade de Columbia e da Universidade da Califórnia — Irvine, aproximadamente 2/3 dos imigrantes nigerianos e nigerianas são universitários e universitárias — ultrapassando aproximadamente em 28% os Estados Unidos. Como coreanos e coreanas, nigerianos e nigerianas constituem uma migração de cérebros, mas, ao contrário dos primeiros e primeiras, são racializados e racializadas como negros e negras em contexto estadunidense.
Nigerianos e nigerianas não perfazem o tal “modelo”, embora evidências constatem não ser o mito de minorias sobre as realizações de um grupo específico, mas uma maneira de reasseverar a existência de uma estrutura de castas raciais e isentar o governo da responsabilidade em remover barreiras institucionais à prosperidade da comunidade negra. O mito da minoria modelo é para asiáticos e asiáticas o que o mito da “criminalidade negra” é para o povo negro. Qualquer imagem acerca da ação inerentemente violenta do povo negro em rejeição a asiático-estadunidenses ou outros grupos não-brancos alimenta o sistema de tropos longamente tecido em torno da retórica do povo negro como criminoso e perpetuado por veículos de comunicação estadunidenses e plataformas congêneres asiáticas, a exemplo do WeChat e Weibo. No último verão, programas de notícia asiáticos propagaram a imagem da “criminalidade negra” durante os protestos por justiça racial, criando uma atmosfera fomentadora do medo em torno de saques e violência no lugar de enfatizarem as manifestações pacíficas.
Nos últimos meses, notícias e vídeos mostrando idosos e idosas asiáticos e asiáticas sendo empurrados, empurradas e agredidos, agredidas por alguns poucos e poucas assaltantes negros e negras nas redes sociais foram rápidos em iluminar o complexo histórico de tensões entre as comunidades negra e asiática. Não que estas fissuras não existissem depois de décadas de política supremacista branca orientada — a narrativa emergente facilmente atribuiu a violência verificada a estas tensões, desconsiderando outros fatores em jogo. Por exemplo, o sentimento antiasiático (ou antichinês) enfrenta ascensão em todo o mundo — da Austrália à Europa e Canadá, pessoas vêm registrando hostilidade crescente frente à China e àqueles e àquelas considerados e considerados chineses e chinesas. Isso para não mencionar os Estados Unidos, onde os nacionalistas brancos cristãos geralmente não se dizem racistas ao chamarem a Covid-19 de “vírus chinês”.
Em última análise, o recente aumento de ataques contra asiáticos e asiáticas não reflete apenas o sentimento antiasiático sempre atravessador dos Estados Unidos, mas também destaca como a percepção de asiático-estadunidenses do status de minoria modelo afastou o racismo da consciência pública por muito tempo. Então, quando os Estados Unidos precisam de uma resposta sobre o motivo desta violência — o mesmo caminho fora rapidamente realizado para culpar asiáticos e asiáticas pela pandemia –, recorre-se prontamente a negras e negros como bode expiatório, ou a narrativas que negam a motivação racial de tais incidentes.
Seguindo em frente através da solidariedade
Como disse a autora e ativista Helen Zia, asiático-estadunidenses não faltam em ação, mas quanto à história. Em razão desta invisibilidade, asiático-estadunidenses não têm consciência da história de ativismo e solidariedade para com as comunidades negras e outras não-brancas.
Não obstante as longas décadas de aculturação em uma sociedade predominantemente branca requeiram bastante trabalho para desfazer tais marcas, o abismo intergeracional entre asiático-estadunidenses que internalizaram o sentimento antinegro e seus, suas descendentes, os e as mais jovens, muito mais dispostos e dispostas a erguerem a voz contra a injustiça, desempenharão papel fundamental nesta mudança narrativa. O início está em olhar os momentos de solidariedade já registrados, e conhecidos, na história de ambas as comunidades.
Em seu livro, O terreno mutável da raça: negros e nipoamericanos na produção multiétnica de Los Angeles (The shifting grounds of race: Black and Japanese Americans in the making of multiethnic Los Angeles, no original, e sem tradução em português), Kurashige examina a coexistência de negros e nipoestadunidenses em Los Angeles antes, durante e depois da Segunda Grande Guerra, voltando até a criação do mito da minoria modelo.
Enquanto nipoestadunidenses eram encarcerados e encarceradas em campos, pessoas negras sob o jugo das Leis Jim Crow sulistas migraram a oeste para Los Angeles e fixaram-se em terrenos então ocupados por nipoestadunidenses. Depois de libertos e libertas dos campos, nipoestadunidenses viram-se diante da necessária integração com suas contrapartes negras. Temendo nova internação compulsória, nipoestadunidenses tentaram provar-se dignos e dignas de reaverem seus direitos constitucionais, trabalhando arduamente. Com a intensificação do policiamento e medo brancos sobre tais comunidades, atribuiu-se a nipoestadunidenses o estereótipo de minoria modelo em virtude da ascensão econômica conseguida após seu período de concentração nos campos.
Este status, todavia, não se traduziu em divisões entre as comunidades nipo e negroestadunidense em si. Kurashige cita histórias sobre os mais velhos e velhas negros e negras que enviaram cestas básicas e cartas aos amigos e amigas japoneses e japonesas alocados e alocadas temporariamente em centros de montagem e, depois concentrados, concentradas, e outra de uma mulher negra que enviou cópias dos anuários de formatura no ensino médio a seus e suas colegas internados, internadas. Quando políticos e políticas e veículos de informação lançaram temores de “levantes raciais” sobre nipoestadunidenses depois da saída autorizada dos campos de concentração, um ativista negro declarou à imprensa: “Eu tenho nada com o retorno dos japoneses e japonesas”.
“Uma amiga que era garçonete na amável e hoje demolida pista de boliche em Crenshaw, Los Angeles, disse a mim ter servido macarrão udon a clientes afroestadunidenses que vieram almoçar com amigos e amigas nipoestadunidenses comendo grãos”, disse Kurashige. “Você encontra momentos de solidariedade como este em todo lugar quando mudamos a estrutura. Seguimos, sim, preocupados e preocupadas com o racismo e a supremacia branca, mas não devemos centrar a branquidade ou ideologias brancas todo o tempo”.
Movimentos de solidariedade entre ambas as comunidades são hoje muito mais difundidos e abertos. Como muitos e muitas estadunidenses este verão, asiático-estadunidenses reuniram-se em torno dos protestos Vidas Negras Importam (Black Lives Matter, no original) e comprometeram-se a debater o tema do sentimento antinegro no interior de suas comunidades. “Estou cansado, cansada de ver a comunidade asiática calada ou inerte, quando o momento é de união para com nossos irmãos e irmãs negros e negras”, disse uma ativista asiático-estadunidense à Vox durante as manifestações VNI (ou BLM) em Austin, Texas, em junho último. Agora, ativistas negros e negras uniram-se a comícios e debates em Nova Iorque e na Califórnia sobre a ressurgência da violência antiasiática. Vídeos comoventes circularam nas redes sociais, mostrando negros e negras entoando algo como “Nós estamos nas ruas lutando pelas vidas asiáticas”.
A cura também tem acontecido a nível comunitário. Em maio último, o Pastor Chang liderou um esforço entre as comunidades negra e asiática pela apresentação de um painel com três séries de debates intitulado “Interconectados/as”, no qual discutiram sobre preconceito racial e conflitos enraizados entre negros e asiáticos-estadunidenses. Como consequência do assassinato de George Floyd pela polícia de Minneapolis, Ray uniu duas igrejas separadas a uma distância de 2km — uma afroestadunidense e outra asiático-estadunidense — na liderança de uma marcha histórica em solidariedade às vidas negras, em Chicago.
“Lançando uma observação holística sobre nossa história, eu verdadeiramente acredito que asiático-estadunidenses guardam mais semelhanças com a comunidade afroestadunidense que com brancos e brancas nos Estados Unidos”, afirma o Pastor Chang. O fato de muitas pessoas não o saberem só mostra o quão desinformados estamos e fragmentada é a nossa compreensão de história.
Complementando este entendimento, Alicia Garza, cofundadora do movimento Vidas Negras Importam e diretora do Laboratório Futuros Negros (Black Futures Lab, no original), afirma que é importante continuar promovendo relações interraciais. Sem isso e movimentos de solidariedade, disse, grupos nacionalistas brancos seguirão se beneficiando dos conflitos intragrupos em vez de abordarem o problema geral do racismo sistêmico e da supremacia branca de frente.
“Nós precisamos assegurar que não cairemos nas armadilhas e estereótipos que nos armarão/recairão”, disse Garza. “A história de solidariedade entre as comunidades negra e asiática é longeva — e estas relações são ainda mais necessárias agora”.
Neste momento de acerto de contas quanto à questão racial, Garza, Pastor Chang, Choi, outros e outras dizem que é fundamental manter debates significativos, apesar de complexos e desconfortáveis, entre os mais diversos grupos para a compreensão das lutas coletivas.
“Devemos navegar profundamente nas histórias de outras comunidades, compreender sua formação e por que são o que são hoje”, disse o Pastor Chang. “Isso vem com leitura, desconstrução e reaprendizado, porque há diversas inconsistências e desinformação sobre como chegamos à contemporaneidade”.
Em última análise, a pandemia expôs as fissuras da sociedade estadunidense, trazendo à tona as camadas do racismo sistêmico e legados da injustiça racial que muitos e muitas nacionais negligenciaram até o momento. E não é apenas das comunidades negra e asiático-estadunidense a responsabilidade de construção da solidariedade, mas sim de todos e todas conscientes do papel desempenhado pela supremacia branca na criação destas fendas repetidamente exploradas.
“Para mim, a crise não se trata do confronto intratável das culturas negra e asiático-estadunidense”, afirma Kurashige. “A crise é sistêmica: a Covid-19, a persistência do nacionalismo branco, a brutalidade policial, os discursos e práticas anti-humanistas estão no centro das mazelas da história do nosso país”.
“Nós precisamos dramaticamente de uma mudança”, conclui. “Soluções radicais jamais vêm de cima para baixo. Elas começam com os grupos populares de base rompendo o status quo”.