A Dama do Lotação: moralismo conservador pequeno-burguês é confrontado em crítica de Nelson Rodrigues e de Neville D’Almeida à pré-abertura democrática (1978)
Título original: A Dama do Lotação
País de origem: Brasil (1978)
Duração: 90 minutos
Gênero: drama erótico
Direção: Neville D’Almeida
Roteiro: Nelson Rodrigues e Neville D’Almeida
História original: Nelson Rodrigues (1977)
Produção: Luiz Carlos Barreto, Sônia Braga, Neville D’Almeida, Nelson Pereira dos Santos, Nelson Rodrigues e Newton Rodrigues
Fotografia: Edson Santos
Montagem: Raimundo Higino
Trilha sonora: Caetano Veloso
Direção de arte: Gilberto Loreiro
Figurino: Marilia Carneiro
Elenco: Sônia Braga, Nuno Leal Maia, Jorge Dória, Paulo César Pereio, Cláudio Marzo, Yara Amaral
Adaptação da obra homônima (1977) de Nelson Rodrigues (1912–1980), A Dama do Lotação (1978) já nasceu um clássico. Sônia Braga e Nuno Leal Maia são Solange e Carlinhos — atentem-se ao diminutivo — , amigos cujas (boas) famílias incentivaram os respectivos namoro e casamento desde a tenra idade. Enfim casados, os nubentes partem para a noite a dois e, uma vez insegura, a protagonista recusa-se a deitar com o companheiro. Insatisfeito com a negativa, o afoito marido estupra a esposa. A seguir, em uma espécie de autopunição pela frigidez que a teria vulnerablizado entre o sexo marital, Solange arvora-se na procura de novos parceiros em meio ao transporte público local, qual não configura tentativa de naturalizar as investidas de Carlinhos — atentaram-se ao diminutivo? — via prática individual.
Integrando-se ou não a ação a uma vingança inconsciente, Neville D’Almeida (1941) e o cronista pernambucano assumem a crítica nada velada ao branco masculinismo misógino e pequeno-burguês transformador de homens em predadores, pois animalizados às pulsões violentas dos próprios desejos. Porquanto fiéis aos instintos ou reféns de uma performance definida de gênero, mesmo uma aventada lealdade de grupo deixa de existir, e a proteção uxoricida da honra torna-se uma falácia moralista qualquer. Em outra vaga, os tons pastéis de figurinos virginais e o penteado preso transmutam-se nos cabelos soltos — ou liberados, em alusão direta a uma pretensa liberdade conquistada — e no uso de indumentárias sensualizantes às formas da personagem principal enfatizado ao investimento em close-ups e nos leitmotivs. A mudança latente no enquadramento da Solange de Sônia Braga avança sobre a centralidade (em tese) assumida da liberação sexual, em oposição à presença quase evadida do Carlinhos de Nuno Leal Maia do campo visual e ao tempo cênico.
Nunca coadjuvante, contudo, é a sobre-representada (semi)nudez feminina, ao contrário da (quase proibitiva) homóloga masculina. Na capital cena do estupro, enquanto a autoria investe até em demasiado na compreensão da vulnerabilidade total de um tipo frente à concupiscência, sua longa duração, diga-se, superexplora a dignidade violada da mulher do casal e a violência em si perpetrada, sendo o plano demorado sobre a nudez imposta revitimizador. Por fim, o diálogo em voice-over do desfecho parece confirmar impressão particular anterior acerca da falsa responsabilidade compartilhada no abuso sofrido durante a lua de mel e da busca autoinfligida do prazer como aqui destinada à satisfação de outrem e da aparência de felicidade do amor romântico, não obstante a paranoia dissociativa forje uma agência mediadamente gestada.
A entender-se o longa em seu contexto histórico de lançamento, todavia, prescinda-se dos liberalismos em uma leitura contemporânea mais complexa de A Dama do Lotação.
Visto para o Clube do Crítico.